2º Domingo do Tempo Comum
Ano B
2.º DOMINGO DO TEMPO COMUM
Tema do 2.º Domingo do Tempo Comum
A liturgia do 2.º Domingo do Tempo Comum convida-nos a descobrir que Deus conta connosco para concretizar, no mundo e na história, o seu projeto; e propõe-nos acolher, com disponibilidade e generosidade, os desafios de Deus.
A primeira leitura traz-nos a história do chamamento do profeta Samuel. Diz-nos que o chamamento é sempre uma iniciativa de Deus: é Ele que vem ao encontro do homem, chama-o pelo nome, desafia-o a ser sinal e testemunho do projeto de Deus no mundo. A resposta do jovem Samuel pode constituir a paradigma da nossa resposta ao Deus que chama.
O Evangelho descreve o encontro de Jesus com os seus primeiros discípulos e esboça o caminho que o discípulo deve percorrer depois desse primeiro encontro: deve ir atrás de Jesus, estabelecer contato com Ele, perceber que Ele é fonte de Vida verdadeira, aceitar viver em comunhão com Ele, tornar-se testemunha dele junto dos outros irmãos.
Na segunda leitura, Paulo convida os cristãos de Corinto a viverem de forma coerente com o chamamento que Deus lhes fez. No crente que vive em comunhão com Cristo e que é Templo do Espírito deve manifestar-se sempre a vida nova de Deus. Todos os baptizados são chamados a dar testemunho do Homem Novo, do Homem que vive de Jesus e que caminha com Jesus.
LEITURA I – 1 Samuel 3,3b-10.19
Naqueles dias,
Samuel dormia no templo do Senhor,
onde se encontrava a arca de Deus.
O Senhor chamou Samuel
e ele respondeu: «Aqui estou».
E, correndo para junto de Heli, disse:
«Aqui estou, porque me chamaste».
Mas Heli respondeu:
«Eu não te chamei; torna a deitar-te».
E ele foi deitar-se.
O Senhor voltou a chamar Samuel.
Samuel levantou-se, foi ter com Heli e disse:
«Aqui estou, porque me chamaste».
Heli respondeu:
«Não te chamei, meu filho; torna a deitar-te».
Samuel ainda não conhecia o Senhor,
porque, até então,
nunca se lhe tinha manifestado a palavra do Senhor.
O Senhor chamou Samuel pela terceira vez.
Ele levantou-se, foi ter com Heli e disse:
«Aqui estou, porque me chamaste».
Então Heli compreendeu que era o Senhor
que chamava pelo jovem.
Disse Heli a Samuel:
«Vai deitar-te; e se te chamarem outra vez, responde:
‘Falai, Senhor, que o vosso servo escuta’».
Samuel voltou para o seu lugar e deitou-se.
O Senhor veio, aproximou-Se e chamou como das outras vezes:
«Samuel! Samuel!»
E Samuel respondeu:
«Falai, Senhor, que o vosso servo escuta».
Samuel foi crescendo;
o Senhor estava com ele
e nenhuma das suas palavras deixou de cumprir-se.
CONTEXTO
O Livro de Samuel situa-nos no período histórico que vai de meados do séc. XI a.C. até ao final do reinado de David (972 a.C.). É durante esse arco temporal que diversas tribos da região – quer as que tinham regressado do Egito com Moisés, quer outras que há vários séculos habitavam a terra de Canaã – vão estreitar laços, de forma a constituírem uma unidade política. Nos últimos anos do séc. XI a.C., essas tribos vão unir-se à volta da realeza davídica.
Os primeiros capítulos do Livro de Samuel situam-nos ainda na fase pré-monárquica. Nessa fase observa-se, por um lado, um processo crescente de sedentarização, de consolidação e de unificação das tribos no território de Canaã, a partir de determinados elementos unificadores, como sejam os “juízes”, os pactos de defesa diante dos inimigos comuns, as federações de tribos vizinhas e os santuários que periodicamente acolhem a Arca da Aliança e assentam as bases da fé monoteísta; por outro lado, observa-se também a precariedade das coligações defensivas diante dos ataques inimigos, a escassa consciência unitária, o descrédito de alguns “juízes”, todo um conjunto de debilidades que geram instabilidade e incerteza… As instituições tribais revelam-se inadequadas para responder aos novos desafios, nomeadamente à pressão militar exercida pelos filisteus. O modelo monárquico dos povos vizinhos parece ser a solução ideal para abordar os novos desafios da história.
Samuel aparece nesse tempo de transição da vida tribal para a monarquia. Pertence à tribo de Efraim, uma tribo instalada no centro do país, na montanha de Efraim (onde, aliás, Samuel exerce o seu ministério). O Livro de Samuel apresenta-o como um “juiz” (narra-se o seu nascimento maravilhoso nos mesmos moldes que o nascimento de Sansão – 1 Sm 1; cf. Jz 13); mas logo se diz que ele foi educado no templo de Silo, onde estava depositada a Arca da Aliança (1 Sm 2,18-21) – o que pode significar que exercia igualmente funções litúrgicas. Mais tarde irá ser chamado, num período de desolação, a conduzir o Povo no combate contra os filisteus.
Samuel é, portanto, uma figura complexa e multifacetada, simultaneamente juiz, sacerdote e chefe dos exércitos. Faz a ponte entre uma época de confusão e de escassa consciência unitária, para uma época onde começa a estruturar-se uma organização mais centralizada.
O texto que a liturgia de hoje nos propõe como primeira leitura apresenta a vocação de Samuel. A cena coloca-nos no santuário de Silo, onde estava a Arca da Aliança. Samuel, consagrado a Deus por sua mãe, era servidor do santuário (cf. 1 Sm 1,11.22-28).
Mais do que um relato fidedigno de acontecimentos concretos, este texto deve ser visto como uma catequese sobre o chamamento de Deus e a resposta do homem, redigida de acordo com o esquema típico dos relatos de vocação.
MENSAGEM
A primeira nota que é preciso sublinhar, a partir do relato da vocação de Samuel, é que a vocação é sempre uma iniciativa de Deus (“o Senhor chamou Samuel” – vers. 4a). É Deus que, seguindo critérios que nos escapam absolutamente, escolhe, chama, interpela, desafia o homem. A indicação de que “Samuel ainda não conhecia o Senhor porque, até então, nunca se lhe tinha manifestado a Palavra do Senhor” (vers. 7) sugere claramente que o chamamento de Samuel parte só de Deus e é uma iniciativa exclusiva de Deus, à qual Samuel é, num primeiro momento, totalmente alheio.
Uma segunda nota é sugerida pelo enquadramento temporal do chamamento: Deus dirige-Se a Samuel enquanto este estava deitado, presumivelmente, durante a noite. É o momento do silêncio, da tranquilidade e da calma, quando a algazarra, o barulho e a confusão se calaram. A nota sugere que a voz de Deus se torna mais facilmente percetível no silêncio, quando o coração e a mente do homem abandonaram a preocupação com os problemas do dia a dia e estão mais livres e disponíveis para escutar os apelos e os desafios de Deus.
Como se plasma a resposta de Samuel ao chamamento de Deus? Antes de mais, o autor desta catequese sublinha a dificuldade de Samuel em reconhecer a voz do Senhor. Javé chamou Samuel por quatro vezes e só na última vez o jovem conseguiu perceber que voz era aquela. Com este pormenor, o catequista evidencia a dificuldade que qualquer chamado experimenta no sentido de identificar a voz de Deus, no meio da multiplicidade de vozes e de apelos que todos os dias atraem a sua atenção e seduzem os seus sentidos.
Depois, sobressai o papel de Heli na descoberta vocacional do jovem Samuel. É Heli que compreende “que era o Senhor quem chamava o menino” e que ensina Samuel a abrir o coração ao chamamento de Javé (“se fores chamado outra vez, responde: «fala, Senhor; o teu servo escuta»” – vers. 9). O pormenor sugere que, tantas vezes, os irmãos que nos rodeiam têm um papel decisivo na perceção da vontade de Deus a nosso respeito e na nossa sensibilização para os apelos e para os desafios que Deus nos apresenta.
Finalmente, o autor põe em relevo a disponibilidade de Samuel para ouvir e para acolher a voz de Deus: “fala, Senhor; o teu servo escuta” (vers. 10). No mundo bíblico, “escutar” não significa apenas ouvir com os ouvidos; mas significa, sobretudo, acolher no coração e integrar na própria vida aquilo que se escutou. É isso que o jovem Samuel se compromete a fazer. Completamente disponível para o serviço de Javé, ele abraça a missão de ser um sinal vivo de Deus, a voz “humana” de Deus que ecoa na vida e na história do seu Povo.
INTERPELAÇÕES
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A vocação é sempre uma iniciativa, misteriosa e gratuita, de Deus. O profeta deve ter plena consciência de que na origem da sua vocação está Deus e que a sua missão só se entende e só se realiza em referência a Deus. Um profeta não se torna profeta por iniciativa própria, para realizar sonhos pessoais, ou porque entende ter as “qualidades profissionais” requeridas para o cargo… O profeta torna-se profeta porque um dia escutou Deus a chamá-lo pelo nome e a confiar-lhe uma missão. Todos nós, chamados por Deus a uma missão no mundo, não podemos esquecer isto: a nossa missão vem de Deus e tem de se desenvolver em referência a Deus. Como profetas, não nos anunciamos a nós próprios, não vendemos os nossos sonhos, não impomos aos outros a nossa visão pessoal das coisas; mas anunciamos e testemunhamos Deus e os seus projetos no meio dos nossos irmãos.
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O relato da vocação de Samuel situa-nos num quadro temporal próprio: de noite, quando já terminaram as tarefas do dia e quando o santuário de Silo está envolvido na tranquilidade, na calma e no silêncio… Provavelmente, o catequista autor deste texto não escolheu este enquadramento por acaso. Ele quis sugerir que é mais fácil detetar a presença de Deus e ouvir a sua voz nesse ambiente favorável de silêncio que favorece a escuta. Quando corremos de um lado para o outro, afadigados em mil e uma atividades, preocupados em responder às solicitações que nos chegam de todos os lados, dificilmente temos espaço e disponibilidade para ouvir a voz de Deus e para detetar esses sinais discretos através dos quais Ele nos indica os seus caminhos. O profeta necessita de tempo e de espaço para rezar, para falar com Deus, para interrogar o seu coração sobre o sentido do que está a fazer, para ouvir esse Deus que fala nas “pequenas coisas” a que nem sempre damos importância. Procuro reservar tempo para interiorizar a Palavra de Deus, para dialogar com Ele e para responder aos desafios que Ele me lança? Estou disponível para escutar o Espírito, como exige o modo sinodal de ser Igreja?
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São muitas as “vozes” que ouvimos todos os dias, vendendo propostas de vida e de felicidade. Muitas vezes, essas “vozes” confundem-nos, alienam-nos e conduzem-nos por caminhos onde a felicidade não está. Como identificar a voz de Deus no meio das vozes que dia a dia escutamos e que nos sugerem uma colorida multiplicidade de caminhos e de propostas? Samuel não identificou a voz de Deus sozinho, mas recorreu à ajuda do sacerdote Heli… Na verdade, aqueles que partilham connosco a mesma fé e que percorrem o mesmo caminho podem ajudar-nos, com as suas palavras e com o seu testemunho, a identificar a voz de Deus. A nossa comunidade cristã desafia-nos, interpela-nos, questiona-nos, ajuda-nos a purificar as nossas opções e a perceber os caminhos que Deus nos propõe.
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Depois de identificar essa “voz” misteriosa que se lhe dirigia, Samuel respondeu: “fala, Senhor; o teu servo escuta”. É a expressão de uma total disponibilidade, abertura e entrega face aos desafios e aos apelos de Deus. É evidente que, na figura de Samuel, o catequista bíblico propõe a atitude paradigmática que devem assumir todos aqueles a quem Deus chama. Como é que me situo face aos apelos e aos desafios de Deus? Com uma obstinada recusa, com um “sim” reticente, ou com total disponibilidade e entrega?
SALMO RESPONSORIAL – Salmo 39 (40)
Refrão: Eu venho, Senhor, para fazer a vossa vontade.
Esperei no Senhor com toda a confiança
e Ele atendeu-me.
Pôs em meus lábios um cântico novo,
um hino de louvor ao nosso Deus.
Não Vos agradaram sacrifícios nem oblações,
mas abristes-me os ouvidos;
não pedistes holocaustos nem expiações,
então clamei: «Aqui estou».
«De mim está escrito no livro da Lei
que faça a vossa vontade.
Assim o quero, ó meu Deus,
a vossa lei está no meu coração».
«Proclamei a justiça na grande assembleia,
não fechei os meus lábios, Senhor, bem o sabeis.
Não escondi a justiça no fundo do coração,
proclamei a vossa bondade e fidelidade».
LEITURA II – 1 Coríntios 6,13c-15a.17-20
Irmãos:
O corpo não é para a imoralidade, mas para o Senhor,
e o Senhor é para o corpo.
Deus, que ressuscitou o Senhor,
também nos ressuscitará a nós pelo seu poder.
Não sabeis que os vossos corpos são membros de Cristo?
Aquele que se une ao Senhor
constitui com Ele um só Espírito.
Fugi da imoralidade.
Qualquer outro pecado que o homem cometa
é exterior ao seu corpo;
mas o que pratica a imoralidade peca contra o próprio corpo.
Não sabeis que o vosso corpo é templo do Espírito Santo,
que habita em vós e vos foi dado por Deus?
Não pertenceis a vós mesmos,
porque fostes resgatados por grande preço:
glorificai a Deus no vosso corpo.
CONTEXTO
No decurso da sua segunda viagem missionária, Paulo chegou a Corinto, depois de atravessar boa parte da Grécia, e ficou por lá cerca de 18 meses (anos 50-52). De acordo com At 18,2-4, Paulo começou a trabalhar em casa de Priscila e Áquila, um casal de judeo-cristãos. Ao sábado, usava da palavra na sinagoga. Com a chegada a Corinto de Silvano e Timóteo (2 Cor 1,19; At 18,5), Paulo consagrou-se inteiramente ao anúncio do Evangelho. Mas não tardou a entrar em conflito com os líderes da comunidade judaica e foi expulso da sinagoga.
Corinto, cidade nova e próspera, era a capital da Província romana da Acaia e a sede do procônsul romano. Servida por dois portos de mar, nela se cruzavam pessoas de todas as raças e religiões. Era a cidade do desregramento para os marinheiros que cruzavam o Mediterrâneo e que, após semanas de navegação, chegavam com vontade de se divertir. Na época de Paulo, a cidade comportava cerca de 500.000 pessoas, das quais dois terços eram escravos. A riqueza escandalosa de alguns contrastava com a miséria da maioria.
Como resultado da pregação de Paulo, nasceu a comunidade cristã de Corinto. A maioria dos membros da comunidade era de origem grega, embora de condição humilde (cf. 1 Cor 11,26-29; 8,7; 10,14.20; 12,2); mas também havia elementos de origem hebraica (cf. At 18,8; 1 Cor 1,22-24; 10,32; 12,13).
De uma forma geral, a comunidade era viva e fervorosa; no entanto, estava exposta aos perigos de um ambiente corrupto: moral dissoluta (cf. 1 Cor 6,12-20; 5,1-2), querelas, disputas, lutas (cf. 1 Cor 1,11-12), sedução da sabedoria filosófica de origem pagã que se introduzia na Igreja revestida de um superficial verniz cristão (cf. 1 Cor 1,19-2,10).
Tratava-se de uma comunidade forte e vigorosa, mas que mergulhava as suas raízes em terreno adverso. No centro da cidade, o templo de Afrodite, a deusa grega do amor, atraía os peregrinos e favorecia os desregramentos e a libertinagem sexual. Os cristãos, naturalmente, viviam envolvidos por este mundo e acabavam por transportar para a comunidade alguns dos vícios da cultura ambiente. Na comunidade de Corinto, vemos as dificuldades da fé cristã em inserir-se num ambiente hostil, marcado por uma cultura pagã e por um conjunto de valores que estão em profunda contradição com a pureza da mensagem evangélica.
Em 1 Cor 6,12 aparece uma frase – possivelmente do próprio Paulo – que servia a alguns cristãos de Corinto para justificar os seus excessos: “Tudo me é permitido”… Paulo explica que “tudo me é permitido, mas nem tudo é conveniente; tudo me é permitido, mas eu não me farei escravo de nada”. Na sequência, Paulo recorda aos membros da comunidade as exigências da sua adesão a Cristo.
MENSAGEM
Pelo Batismo, o cristão torna-se membro de Cristo e forma com ele um único corpo. A partir desse momento, os pensamentos, as palavras, as atitudes do cristão devem ser os de Cristo e devem testemunhar, diante do mundo, o próprio Cristo. No “corpo” do cristão manifesta-se, portanto, a realidade do “corpo” de Cristo.
Mais ainda: o cristão é também Templo do Espírito. Para os judeus, o “templo” de Jerusalém era o lugar onde Deus residia no mundo e se manifestava ao seu Povo… Dizer que os cristãos são “Templo do Espírito” significa que eles são agora o lugar onde reside e se manifesta a vida de Deus. No Batismo, o cristão recebe o Espírito de Deus; e é esse Espírito que vai, a partir desse instante, conduzi-lo, inspirar os seus pensamentos, condicionar as suas ações e comportamentos.
Estão aqui sugeridos os elementos fundamentais da antropologia cristã… O “corpo” é o lugar onde se manifesta historicamente essa vida nova que inunda o crente, após a sua adesão a Cristo. Por isso, o “corpo” – ao contrário do que defendiam algumas correntes bem representadas nas escolas filosóficas de Corinto – não é algo desprezível, baixo, miserável, condenado; mas é algo que tem uma suprema dignidade, pois é nele que se manifesta no mundo a vida de Deus.
Paulo tira disto algumas consequências práticas e não hesita em aplicá-las à situação concreta dos crentes de Corinto, às vezes tentados por comportamentos pouco edificantes, particularmente no âmbito da vivência da sexualidade: se os cristãos são membros de Cristo e vivem em comunhão com Cristo, devem evitar os comportamentos desregrados no domínio da sexualidade; se os cristãos são “Templo do Espírito” e os seus corpos são o lugar onde se manifesta a vida nova de Deus, certas atitudes e hábitos desordenados não são dignos dos crentes.
No “corpo” dos cristãos deve manifestar-se a vida de Deus. Ora, tudo aquilo que é expressão de egoísmo, de procura desenfreada dos próprios interesses, de realização descontrolada dos próprios caprichos, de comportamentos que usam e instrumentalizam o outro, está em absoluta contradição com essa vida nova de Deus que é relação, entrega mútua, compromisso sério, amor verdadeiro. É verdade que os crentes são livres; mas a liberdade cristã tem como limite o próprio Cristo: nada do que contradiz os valores e o projeto de Jesus pode ser aceite pelo cristão. Aliás, os crentes devem ter consciência de que o radicalismo da liberdade acaba frequentemente na escravidão.
Paulo termina com um convite singular: “glorificai a Deus no vosso corpo” (vers. 20). É através de comportamentos e atitudes onde se manifesta a realidade da vida nova de Jesus que os crentes podem “prestar culto” a Deus. O “culto” a Deus não passa pela prática de um conjunto de ritos externos, mais ou menos pomposos, mais ou menos solenes, mas sim por um compromisso de vida que afeta a pessoa inteira e que diz respeito à relação do crente com os outros irmãos ou irmãs e consigo próprio. É preciso que em todas as circunstâncias – inclusive no campo da vivência da sexualidade – a vida do crente seja entrega, serviço, doação, respeito, amor verdadeiro. É esse o culto que Deus exige.
INTERPELAÇÕES
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Somos todos chamados a integrar o “corpo” de Cristo. No dia do nosso Batismo respondemos positivamente ao convite que, nesse sentido, nos foi feito; e depois, ao longo do caminho, reiterámos vezes sem conta esse compromisso… Vivemos conscientes disso? Essa opção fundamental é uma realidade que temos sempre presente em todos os passos do nosso percurso de vida?
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A adesão a Cristo implica assumirmos comportamentos coerentes com o que Jesus nos disse em palavras e em gestos; implica segui-l’O no caminho do amor incondicional, do serviço simples e gratuito, da doação total a Deus e aos nossos irmãos. Assim, nada do que é egoísmo, exploração, violência, prepotência, mentira, abuso dos direitos e dignidade do outro, procura desordenada do bem próprio à custa do outro, poderá entrar, como normalidade, na vida do discípulo de Jesus. O meu comportamento no contexto familiar, no espaço onde exerço a minha vida profissional, no meu círculo de relações é condizente com a minha qualidade de discípulo de Jesus?
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A propósito, Paulo coloca o problema da vivência da sexualidade… Essa importante dimensão da nossa realização como pessoas não pode concretizar-se em ações egoístas, que nos escravizam a nós e que instrumentalizam os outros; mas tem de concretizar-se num quadro de amor verdadeiro, de relação, de entrega mútua, de compromisso, de respeito absoluto pelo outro e pela sua dignidade. Neste campo surgem, com alguma frequência, denúncias de comportamentos e atitudes, dentro e fora da Igreja, que afetam e magoam pessoas frágeis e indefesas. Devemos ter sempre isto bem claro: qualquer comportamento abusivo que desrespeite a dignidade e a autonomia dos outros irmãos e irmãs que se cruzam connosco constitui uma grave subversão dos valores de Jesus.
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“Tudo me é permitido” – dizia-se no tempo de Paulo e repete-se hoje… Será a liberdade um valor absoluto? Para os discípulos de Jesus, a liberdade não pode traduzir-se em comportamentos e opções que neguem a nossa opção fundamental por Cristo. Há quem ache que só nos realizaremos plenamente se pudermos fazer tudo o que nos apetecer… Contudo, o cristão sabe que “nem tudo lhe convém”. Aliás, certas opções contrárias aos valores do Evangelho não conduzem à liberdade, mas à dependência e à escravidão.
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Qual é o verdadeiro “culto” que Deus pede? Como é que traduzimos, em gestos concretos, a nossa adesão a Deus? Paulo sugere que o verdadeiro culto, o culto que Deus espera, é uma vida coerente com os compromissos que assumimos com Ele, traduzida em gestos concretos de amor, de entrega, de doação, de respeito pelo outro e pela sua dignidade.
ALELUIA – cf. João 1,41.17b
Aleluia. Aleluia.
Encontramos o Messias, que é Jesus Cristo.
Por Ele nos veio a graça e a verdade.
EVANGELHO – João 1,35-42
Naquele tempo,
estava João Baptista com dois dos seus discípulos
e, vendo Jesus que passava, disse:
«Eis o Cordeiro de Deus».
Os dois discípulos ouviram-no dizer aquelas palavras
e seguiram Jesus.
Entretanto, Jesus voltou-Se;
e, ao ver que O seguiam, disse-lhes:
«Que procurais?»
Eles responderam:
«Rabi – que quer dizer ‘Mestre’ – onde moras?»
Disse-lhes Jesus: «Vinde ver».
Eles foram ver onde morava
e ficaram com Ele nesse dia.
Era por volta das quatro horas da tarde.
André, irmão de Simão Pedro,
foi um dos que ouviram João e seguiram Jesus.
Foi procurar primeiro seu irmão Simão e disse-lhe:
«Encontrámos o Messias» – que quer dizer ‘Cristo’ –;
e levou-o a Jesus.
Fitando os olhos nele, Jesus disse-lhe:
«Tu és Simão, filho de João.
Chamar-te-ás Cefas» – que quer dizer ‘Pedro’.
CONTEXTO
Este trecho integra a secção introdutória do Quarto Evangelho (cf. Jo 1,19-3,36). Nessa secção, a principal preocupação do autor é apresentar a figura de Jesus.
João, o autor do Quarto Evangelho, convida-nos a participar numa montagem cénica. Diante dos nossos olhos, diversas personagens vão entrando no palco e apresentam-nos Jesus. As declarações que lhes são postas na boca não são palavras de circunstância, mas são afirmações categóricas, carregadas de significado teológico, que nos convidam a mergulhar no mistério de Jesus. O quadro final que resulta destas diversas intervenções apresenta Jesus como o Messias, Filho de Deus, que possui o Espírito e que veio ao encontro dos homens para fazer aparecer o Homem Novo, nascido da água e do Espírito.
João Baptista tem um lugar especial neste contexto de apresentação de Jesus. O seu testemunho aparece no início e no fim da secção – cf. Jo 1,19-37; 3,22-36), como se ele tivesse mais a dizer do que qualquer outro. De facto, a catequese cristã sempre o viu como “o percursor do Messias”, aquele que Deus enviou para preparar os homens para acolherem Jesus.
O nosso texto põe ainda em cena três discípulos: André, um outro discípulo não identificado e Simão Pedro. Os dois primeiros são apresentados como discípulos de João e é por indicação de João que seguem Jesus. Trata-se de um quadro de vocação que difere substancialmente dos relatos de chamamento dos primeiros discípulos apresentados pelos sinópticos (cf. Mt 4,18-22; Mc 1,16-20; Lc 5,1-11). Em todo o caso, estamos diante de um modelo de chamamento e de seguimento de Jesus, mais do que uma reportagem sobre um acontecimento real.
MENSAGEM
O quadro inicial situa-nos junto do rio Jordão (vers. 35-37). Em cena estão, inicialmente, três personagens: João Batista e dois dos seus discípulos. Os discípulos referidos são, certamente, homens que tinham escutado a pregação de João e recebido o seu baptismo. Estavam disponíveis para romper com a “vida velha” e para acolher o Messias que Israel esperava ansiosamente e que, segundo João, estava para chegar.
Entretanto, Jesus entra em cena. João viu Jesus “que passava” e indicou-O aos seus dois discípulos, dizendo: “eis o cordeiro de Deus” (vers. 36). João é uma figura estática, cuja missão é meramente circunstancial e consiste apenas em preparar os homens para acolher o Messias libertador; quando esse Messias “passa”, a missão de João termina e começa uma nova realidade. João está plenamente consciente disso… Não procura prolongar o seu protagonismo ou conservar no seu círculo restrito esses discípulos que durante algum tempo o escutaram e que beberam a sua mensagem. Ele sabe que a sua missão não é congregar à sua volta um grupo de adeptos, mas preparar o coração dos homens para acolher Jesus e a sua proposta libertadora. Por isso, na ocasião certa, indica Jesus aos seus discípulos e convida-os a segui-l’O.
A expressão “eis o cordeiro de Deus”, usada por João para apresentar Jesus, fará, provavelmente, referência ao “cordeiro pascal”, símbolo da libertação oferecida por Deus ao seu Povo, prisioneiro no Egipto (cf. Ex 12,3-14. 21-28). Esta expressão define Jesus como o enviado de Deus, que vem inaugurar a nova Páscoa e realizar a libertação definitiva dos homens. A missão de Jesus consiste, portanto, em eliminar as cadeias do egoísmo e do pecado que prendem os homens à escravidão e que os impedem de chegar à vida plena.
Depois da declaração de João, os discípulos reconhecem em Jesus esse Messias com uma proposta de vida verdadeira e seguem-n’O. “Seguir Jesus” é uma expressão técnica que o autor do Quarto Evangelho aplica, com frequência, aos discípulos (cf. Jo 1,43; 8,12; 10,4; 12,26; 13,36; 21,19). Significa caminhar atrás de Jesus, percorrer o mesmo caminho de amor e de entrega que Ele percorreu, adotar os mesmos objetivos de Jesus e colaborar com Ele na missão. A reação dos discípulos é imediata. Não há aqui lugar para dúvidas, para desculpas, para considerações que protelem a decisão, para pedidos de explicação, para procura de garantias… Eles, simplesmente, “seguem” Jesus.
Num segundo quadro, somos convidados a assistir a um diálogo entre Jesus e os dois discípulos (vers. 38-39). A pergunta inicial de Jesus (“que procurais?”) sugere que é importante, para os discípulos, terem consciência do que esperam de Jesus, daquilo que Jesus lhes pode oferecer. O autor do Quarto Evangelho insinua aqui, talvez, que há quem segue Jesus por motivos errados, procurando n’Ele a realização de objetivos pessoais que estão muito longe da proposta que Jesus veio fazer.
Os discípulos respondem com uma pergunta (“Rabi, onde moras?”). Nela, está implícita a sua vontade de aderir totalmente a Jesus, de aprender com Ele, de habitar com Ele, de estabelecer comunhão de vida com Ele. Ao chamar-Lhe “Rabi”, indicam que estão dispostos a seguir as suas instruções, a aprender com Ele um modo de vida; a referência à “morada” de Jesus indica que eles estão dispostos a ficar perto de Jesus, a partilhar a sua vida, a viver sob a sua influência. É uma afirmação respeitosa de adesão incondicional a Jesus e ao seu seguimento.
Jesus convida-os: “vinde ver”. O convite de Jesus significa que Ele aceita a pretensão dos discípulos e os convida a segui-l’O, a aprender com Ele, a partilhar a sua vida. Os discípulos devem “ir” e “ver”, pessoalmente, pois a identificação com Jesus não é algo a que se chega por simples informação, mas algo que se alcança apenas por experiência pessoal de adesão, comunhão e encontro com Ele.
Os discípulos aceitam o convite e fazem a experiência da partilha da vida com Jesus. Essa experiência direta convence-os a ficar com Jesus (“ficaram com Ele nesse dia”). Nasce, assim, a comunidade do Messias, a comunidade da nova aliança. É a comunidade daqueles que encontram Jesus que passa, procuram n’Ele a verdadeira vida e a verdadeira liberdade, identificam-se com Ele, aceitam segui-l’O no caminho que Ele apontar, estão dispostos a uma vida de total comunhão com Ele.
Num terceiro quadro (vers. 40-41), os discípulos tornam-se testemunhas. É o último passo deste “caminho vocacional”: quem encontra Jesus e experimenta a comunhão com Ele, não pode deixar de se tornar testemunha da sua mensagem e da sua proposta libertadora. Trata-se de uma experiência tão marcante que transborda os limites estreitos do próprio eu e se torna anúncio libertador para os irmãos. O encontro com Jesus, se é verdadeiro, conduz sempre a uma dinâmica missionária.
INTERPELAÇÕES
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Começamos há poucos dias um novo ano. Que programa temos para o caminho? O autor do Quarto Evangelho tem uma proposta irrecusável a fazer-nos para este ano… Convida-nos a redescobrir Jesus que passa, a ir atrás dele, a entrar na casa dele, a partilhar a sua vida e o seu projeto, a interiorizar as suas atitudes fundamentais… Se aceitarmos, espera-nos uma aventura inolvidável, uma experiência profundamente libertadora, um percurso que nos conduzirá a uma Vida de plena realização. Aceitamos o convite?
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“Que procurais?” – pergunta Jesus àqueles dois discípulos que ousaram ir atrás dele… A todos nós que nos sentimos insatisfeitos, que não nos conformamos com a mediocridade, que temos sede de mais humanidade e de mais paz, que não estamos dispostos a passar o nosso tempo de vida comodamente refugiados na nossa estéril zona de conforto, que nos questionamos sobre a forma como o nosso mundo está a ser construído, Jesus pergunta também: “Que procurais?” Estamos conscientes de que Jesus é a fonte que pode saciar a nossa sede de Vida? E estamos disponíveis para dar testemunho de Jesus a todos os homens e mulheres que vivem perdidos no labirinto da vida e que não sabem como dar sentido à sua existência?
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De acordo com esta bela página do Evangelho segundo João, a adesão a Jesus só pode ser radical e absoluta, sem meias tintas nem hesitações. Os dois primeiros discípulos não discutiram o “ordenado” que iam ganhar, se a aventura tinha futuro ou se estava condenada ao fracasso, se o abandono de um mestre para seguir outro representava uma promoção ou uma despromoção, se o que deixavam para trás era importante ou não era importante; simplesmente “seguiram Jesus”, sem garantias, sem condições, sem explicações supérfluas, sem “seguros de vida”, sem se preocuparem em salvaguardar o futuro se a aventura não desse certo. A aventura da vocação é sempre – e para nós também – um salto, decidido e sereno, para os braços de Deus.
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André e o outro discípulo contaram com a ajuda de João Batista para encontrar Jesus e se decidirem a ir atrás dele. Este pormenor lembra-nos o papel dos irmãos da nossa comunidade na nossa caminhada de fé e na nossa descoberta de Jesus. A fé não é um caminho solitário, que cada um percorre isoladamente; mas é uma experiência comunitária, vivida no diálogo e na partilha com os irmãos e irmãs que caminham ao nosso lado e com quem nos reunimos, ao menos no “dia do Senhor”, para rezar e celebrar. A comunidade cristã é o espaço habitual onde a minha fé se expressa, se concretiza, se confronta e se desenvolve?
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O encontro com Jesus é um caminho que tem de me levar ao encontro dos irmãos e que deve tornar-se, em qualquer tempo e em qualquer circunstância, anúncio e testemunho. Quem experimenta a vida e a liberdade que Cristo oferece, não pode calar essa descoberta; mas deve sentir a necessidade de a partilhar com os outros, a fim de que também eles possam encontrar o verdadeiro sentido para a sua existência. “Encontrámos o Messias” deve ser o anúncio jubiloso de quem encontrou Jesus, fez com Ele uma verdadeira experiência de vida nova e anseia por levar os irmãos a uma descoberta semelhante.
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João Baptista nunca procurou apontar os holofotes para a sua própria pessoa e criar um grupo de adeptos ou seguidores que satisfizessem a sua vaidade ou a sua ânsia de protagonismo… A sua preocupação foi apenas preparar o coração dos seus concidadãos para acolher Jesus. Depois, retirou-se discretamente para a sombra, deixando que os projetos de Deus seguissem o seu curso. João ensina-nos a nunca nos tornarmos protagonistas ou a atrair sobre nós as atenções; a sermos testemunhas de Jesus, não de nós próprios.