MENSAGEM PARA O 175º ANIVERSÁRIO DE NASCIMENTO DO PADRE DEHON
Cristo, refúgio dos aflitos e dos pecadores
Carta para o 14 de Março, na celebração do 175.º aniversário do nascimento do Padre Leão Dehon.
Neste dia 14 de Março de 2018, celebramos o 175.º aniversário do nascimento do Padre João Leão Dehon, Fundador da nossa Congregação. Queremos convidar todos vocês a olhar para o ele e a partir dele ler a realidade de hoje.
As numerosas situações de exclusão que as pessoas vivem levam-nos a revisitar a obra de misericórdia espiritual de consolar os tristes. Muitos dos nossos contemporâneos vivem nas margens, como exilados, dentro e fora da sua terra natal. Pensamos nos refugiados que fogem dos seus países ou das suas regiões por causa das difíceis condições de vida causadas pelas guerras ou pelas catástrofes naturais; pensamos nos prisioneiros, nas vítimas de injustiças de todo o tipo, cujos direitos são violados; pensamos também nos pecadores, angustiados pelo peso dos seus pecados… Além disto, vale a pena referir que o mundo está cada vez mais controlado pelos ricos e poderosos que não são sensíveis ao grito dos “condenados da terra” [Título da obra do escritor de Martinica Frantz Fanon, Les damnés de la terre, Maspero, Paris 1961].
Volvendo o nosso olhar para Deus, que em Jesus Cristo mostra o seu coração ferido e se solidariza com todo o sofrimento, podemos encontrar uma resposta espiritual para o homem aflito, excluído e rejeitado do nosso tempo.
Deus não é indiferente à situação das pessoas
Nos Evangelhos vemos que Deus se identifica com os aflitos: “Tenho pena desta multidão” (Mt 15,32); “estive na prisão” (Mt 25,36.43); “Jesus começou a chorar” (Jo 11,35); “Sempre que deixastes de fazer isto a um destes pequeninos, foi a mim que o deixastes de fazer” (Mt 25,45). Estas expressões de Cristo orientam a nossa proposta e indicam-nos que aquilo que dá sentido à nossa vida não é o sofrimento em si mesmo, mas o amor que nos compromete na doação aos outros. Esta é a vida cristã que pode ser entendida como possibilidade razoável para os nossos contemporâneos. A nossa tarefa não é apenas esta de nos questionarmos sobre o motivo das lágrimas e de tantas aflições, mas de trabalhar para que diminuam as lágrimas daqueles que necessitam de ser consolados.
“Tenho pena desta multidão” (Mt 15,32)
Uma das inquietações que marcou fortemente a ação de Jesus foi a multidão. Ele tem pena porque vê todas aquelas pessoas abatidas como ovelhas sem pastor. Hoje deparamo-nos com a situação dos homens do nosso mundo que vivem nas margens e nas periferias. Também eles são desprezados como ovelhas sem pastor e perdem toda a esperança de encontrar melhorias para a sua própria realidade. Muitos dos excluídos do usufruto dos bens estão convencidos de que nada pode mudar o seu destino e que vieram ao mundo apenas para acompanhar os outros. Esta resignação ao sofrimento expressa a amargura que sentem nos seus corações e pode dar origem a pensamentos pessimistas e violentos.
A multidão da qual Jesus sente compaixão, vive exilada no seu país, estranha a si mesma [cf. Bento XVI, Homilia no Estádio Ahmadou Ahidjo de Yaoundé, a 19 de Março de 2008]; como um condenado à morte que espera a execução (Blaise Pascal), como um cordeiro levado ao matadouro (Is 53,7). Outros são como ovelhas no meio de lobos (Mt 10,16) e experimentam apenas a fúria e o rosto rude dos seus verdugos. Há crianças abusadas por adultos, e idosos espalhados nos cantos das ruas como bandeiras de miséria e de luto [cf. Emile Zola, Germinal, Livro IV, capítulo 7]. Jesus identifica-se com eles, tendo Ele próprio experimentado o sofrimento no Getsêmani e no Gólgota. Jesus não se limita a ter compaixão, mas partilha os seus sofrimentos, carregando-os sobre si. Jesus coloca aos ombros a ovelha perdida (Lc 15,7; Ez 34,12), cuida a que está ferida (Ez 34,16). Nesta perspectiva escreve assim o Padre Dehon:
“O Coração de Jesus transborda de ternura e de compaixão por todos os que sofrem, por todos os que penam, por todos os que têm fome, por todos os que estão doentes. É um coração de pai, um coração de mãe, um coração de pastor. Jesus é o nosso pai como Deus, como Salvador, mas é-o também como Pontífice, como padre. É nosso pastor, é o Bom Pastor por excelência. É o seu coração de padre que sofre quando nós sofremos. Mais do que S. Paulo, pode dizer: «Quem de vós está a sofrer sem que eu não esteja também?» (2Cor 11,29)” [Le Cœur sacerdotal de Jésus, CSJ 126].
“Estive na prisão” (Mt 25,36.43)
Jesus também identifica-se com os prisioneiros. Durante a sua paixão Jesus sofreu a sorte reservada aos prisioneiros. Acusado, conduzido perante o Sinédrio (Lc 22,66-71), Pilatos e Herodes (Lc 23,1-12), é julgado, condenado à morte e pregado na cruz como um comum malfeitor.
Experimentou o sofrimento do prisioneiro: a privação da liberdade, as bofetadas, os insultos, a zombaria, as humilhações de todo o tipo, a traição e o abandono, a indiferença das pessoas a quem fez o bem, curando alguns, defendendo outros da opressão dos homens ou das forças do mal:
“Para que se cumprisse o que foi dito pelo profeta Isaías: Ele tomou as nossas enfermidades e carregou as nossas dores” (Mt 8,17).
Cristo sofreu por nós, como um prisioneiro. Graças a Ele, beneficiamo-nos da graça de Deus, que é como uma anistia ou clemência que um rei concede aos seus súditos [cf. Mgr Albert Ndongmo, Le Salut de Dieu selon Saint Paul, Editions Paulines, Montréal, 1978, p. 103]. Também é verdade que os pobres são sacramento do pecado do mundo, da injustiça que reina na terra e, na atitude para com eles, avaliamos a nossa capacidade de viver no mundo como corpo de Cristo. De fato, quando vemos uma pessoa oprimida, devemos saber interpretar essa situação como fruto da injustiça pela qual nós também somos responsáveis. A partir desta tomada de consciência, surgirá, então, a vontade de nos tornarmos mais próximos daqueles que sofrem e, assim, lutarmos contra aquilo que os angustia. Depois de termos lutado para eliminar a miséria, e até mesmo durante o tempo em que estamos a lutar, o prisioneiro torna-se já para nós sacramento de Cristo, mesmo que só façamos essa descoberta no fim dos tempos.
“Jesus começou a chorar” (Jo 11,35)
Apesar de tanto sofrimento, em Jesus encontramos um coração misericordioso, que se interessa pela miséria dos homens. Não é indiferente, mas é compassivo. Avalia o peso dos sofrimentos que suportam e compreende o seu desespero.
Ao assumir a condição humana, assumiu toda a sua miséria, “tornando-se obediente até à morte e morte de cruz” (Fl 2,8). Ao aceitar a paixão e a morte, Jesus tornou-se solidário com a humanidade sofredora. É o seu coração, que ao transbordar de amor, conduz a esta aceitação. Jesus não é apenas compassivo, mas quer também curar os sofrimentos do homem. Continua a dizer às pessoas que são vítimas da exclusão, da miséria e do futuro sombrio:
“Vinde a mim, todos os que estais cansados e oprimidos, que Eu hei-de aliviar-vos. Tomai sobre vós o meu jugo e aprendei de mim, porque sou manso e humilde de coração e encontrareis descanso para o vosso espírito. Pois o meu jugo é suave e o meu fardo é leve” (Mt 11,28-30).
O jugo alivia o peso porque promove a união das forças e a partilha da dor. Jesus convida aqueles que sofrem a tomar o seu jugo, porque Ele quer ser solidário com os que sofrem, ajudando-os a carregar os seus fardos. O seu jugo é humildade e doçura de coração. Ser humilde significa carregar um jugo que crucifica o orgulho, o egoísmo, a busca de prazeres excessivos que degradam o homem.
É com doçura que Cristo abre os corações endurecidos pelo pecado. E demonstrou-o com a mulher Samaritana presa a preconceitos tribais, culturais e religiosos (Jo 4,5-30), com Marta mergulhada na agitação, acusando a sua irmã Maria de indiferença (Lc 10,38-42), com o doutor
da lei que queria mostrar que sabia (Lc 10,25-37), com Zaqueu empedernido no pecado (Lc 19,1-10), com a mulher adúltera que já não esperava libertar-se das garras dos seus acusadores (Jo 8,1-11)… Estes textos mostram-nos que o coração de Jesus é o verdadeiro refúgio dos pecadores e dos desprezados.
Todos os destinatários deste acolhimento tomam opções que conduzem a uma conversão radical. A samaritana torna-se missionária de Cristo junto do seu povo, após rejeitar os preconceitos tribais, culturais e cultuais que endureciam o seu coração e a tornavam relutante ao diálogo com Cristo. Maria encontra a paz de coração quando o Senhor a protege da agitação da sua irmã Marta. O doutor da lei, enquanto ouve a história do Bom Samaritano, beneficia-se do encorajamento e do conselho de Cristo que o convida a ter sempre um coração aberto a todos os necessitados, seja qual for a sua condição e a sua pertença tribal. Zaqueu é aquele que mais se beneficia dos dons do Coração de Cristo e mostra que aquele a quem mais se perdoa, mais se
abre aos outros (Lc 7,43).
O encontro com quem está em dificuldade permite descobrir a força da intimidade. A consolação não é uma questão de quantidade, mas experimenta-se na proximidade. Necessita de discrição, de proximidade afetiva e coloquial. Proximidade alegremente partilhada com todas as realidades profundas e indefesas do homem. A intimidade é o lugar, material e espiritual, que é espontaneamente procurado no momento do regresso após longas distâncias e separações. É o tempo em que fazemos regressar a dimensão humana das relações com os nossos semelhantes.
“Sempre que deixastes de fazer isto a um destes pequeninos, foi a mim que o deixastes de fazer” (Mt 25,45)
Se é assim tão importante a relação de intimidade com quem vive na dor, como nos demonstram as ações de Jesus Cristo, não podemos, então, permanecer indiferentes à miséria dos pequenos, dos pobres e dos marginalizados do nosso tempo. O Vaticano II convida os cristãos e toda a Igreja a seguir o exemplo:
“As alegrias e as esperanças, as tristezas e as angústias dos homens de hoje, sobretudo dos pobres e de todos aqueles que sofrem, são também as alegrias e as esperanças, as tristezas e as angústias dos discípulos de Cristo; e não há realidade alguma verdadeiramente humana que não encontre eco no seu coração… Por este motivo, a Igreja sente-se real e intimamente ligada ao gênero humano e à sua história” [Gaudium et Spes, 1].
Para sermos solidários com os homens, devemos seguir a mesma lógica de Cristo, isto é, saber renunciar aos nossos privilégios, tornando-nos pobres com os pobres. Devemos chegar às periferias e não apenas falar de pobreza. É nesta perspectiva que não devemos ter medo de avançar para as margens e as periferias, para os lugares onde os homens sofrem: prisões, hospitais, catástrofes, barracas… O trabalho não é feito apenas de compaixão, mas também de presença nos lugares onde se tomam as decisões, a fim de fazer ressoar a voz de Cristo em favor dos marginalizados, mesmo que muitas vezes seja sufocada. Padre Dehon lembra-nos que, antes de cada ação, há uma vida que se doa:
“Apraz à bondade do nosso Deus multiplicar na sua Igreja, as almas sacerdotais que, todas animadas e vivendo das disposições do Coração de Jesus, Apóstolo e Pontífice, sejam apóstolos primeiro pela oração, pela imolação interior, pelos ardores abrasadores do amor de condolência, e depois (somente depois) pelas obras exteriores do zelo! Sem este fogo interior, toda a atividade do zelo nada mais seria do que fumo (P. Giraud)” [Le Cœur sacerdotal de Jésus, CSJ 210].
A pedagogia para a libertação dos pobres exige que abandonemos os imperativos categóricos e as bonitas teorias produzidas em laboratório. A verdade deve ser dita aos pobres e aos que concebem e promovem a miséria para que libertem os marginalizados das periferias.
O considerar-se hóspede do humano que nos habita, hóspede e não senhor, ajuda-nos a cuidar do humano que existe em nós e nos outros. Podemos sair da indiferença e da rejeição da compaixão que só nos pode conduzir ao compromisso com o outro nas suas necessidades. O pobre, cuja humanidade é humilhada pelo peso da privação, do desinteresse e da desconfiança, começa a ser bem-vindo quando eu começo a escutar a sentir como minhas a sua humilhação e a sua vergonha.
Como filhos do Padre Dehon, não devemos ser indiferentes às pessoas de “coração ferido”
[Incluindo aqueles e aquelas que hoje se chamam «os novos feridos» (cf. Cathérine Malabou, Les nouveaux blessés : De Freud à la neurologie, penser les traumatismes, PUF, Paris, 2007). Para nós será importante não apenas pensar, mas também cuidar deles]
Para assumir plenamente o ser humano, precisamos beber do “coração ferido” de Cristo para unirmo-nos ao homem com o coração ferido e contribuir para aliviar o seu jugo; por outras palavras: dar-lhe alívio.
Como podemos notar nas Constituições, a nossa espiritualidade tem dois conceitos que nos levam a seguir Cristo para aliviar o sofrimento dos aflitos: amor e reparação:
“O Padre Dehon espera que os seus religiosos sejam profetas do amor e servidores da reconciliação dos homens e do mundo em Cristo (cf. 2Cor 5,18). Assim comprometidos com Ele, para reparar o pecado e a falta de amor na Igreja e no mundo, prestarão, com toda a sua vida, com as orações, trabalhos, sofrimentos e alegrias, o culto de amor e de reparação que o seu Coração deseja (cf. NQT XXV, 5)” [Regra de Vida, 7].
O drama do Calvário explica-se à luz do Coração trespassado do Redentor. O ato da transfixão do Coração de Cristo para comprovar a certeza de sua morte, foi também o gesto final pelo qual a humanidade rejeitou a salvação que nos foi oferecida pelo Filho de Deus encarnado.
Deus, por sua vez, transformou este gesto de obstinação em canal de graça para redimir, em modo sacerdotal, no Coração de Cristo, a humanidade inteira. A reparação ao Coração de Jesus deve primeiro ser imbuída do mistério do livre amor do Pai, que em Cristo reconciliou o mundo. O seu amor era reparador, isto é, feito a Deus em nome de uma humanidade que não podia fazê-lo, para poder, por sua vez, regressar à comunhão com o Pai e com os irmãos.
É nesta perspectiva que podemos compreender a vocação reparadora. Reparar é contribuir para estabelecer o reino da justiça e da caridade cristã [cf. Regra de Vida, 32] no mundo, é determinar, de acordo com o tempo e o lugar, os compromissos concretos que, na Igreja local, correspondem a estas orientações apostólicas [cf. Ibidem].
Reparar é procurar com as Igrejas locais as modalidades de nossa inserção na missão eclesial que nos permite expandir as riquezas da nossa vocação [Regra de Vida, 34]. Reparar é partilhar o sofrimento do mundo de hoje no seu esforço de libertação: libertação de tudo o que lesa a dignidade do homem e ameaça a realização das suas mais profundas aspirações: a verdade, a justiça, o amor, a liberdade [Regra de Vida, 36]. Há uma disponibilidade que nos torna servos, não na lógica da misericórdia, mas na atualidade da misericórdia. Usemos o título de “bem-aventurados”, tornando-nos pobres, e conquistemos no campo de ação o título de “abençoados”, amando e servindo os pobres.
O anúncio do ano do “Coração ferido”
O tema da consolação é profundamente dehoniano e, para dar consistência a este aspecto, começamos na Congregação, neste dia 14 de Março de 2018, o ano do “Coração ferido”, que terminará com a celebração da Solenidade do Sagrado Coração Jesus, em 2019. Para nós, o “Coração ferido” é o ícone do século XXI que transmite uma mensagem que vai além da palavra. Este símbolo é capaz de acolher os sentimentos das mulheres e dos homens deste mundo. O ícone do “Coração ferido” sabe revelar a vida interior e íntima feita de desejos e expectativas, de frustrações e sofrimentos. Aponta para os sentimentos de muitas pessoas, torna vivas as suas lágrimas e angústias, as suas torturas e sofrimentos até o sangue. Tudo o que está próximo do homem traz consigo o sinal da ferida.
À volta deste ícone, queremos juntar as iniciativas presentes e as que serão fomentadas nas diferentes Entidades. Queremos promover a criatividade, tanto a nível teológico como filosófico, para desenvolver compromissos em diversas áreas, ao nível da arte e da música para, com a palavra, dar expressão ao sofrimento e propor soluções para reverter as situações marcadas pela miséria e colocadas na margens da vida comum.
É um kairós para nós, filhos do Padre Dehon, que no seu testamento espiritual nos diz: “Deixo-vos o mais maravilhoso dos tesouros, o Coração de Jesus”; “para Ele vivo, para Ele morro”. É, portanto, um tempo favorável para abrir este tesouro e descobrir as inúmeras riquezas que encerra para o nosso apostolado e a nossa missão.
Neste ano, desejamos tornar o “Coração ferido” de nosso Senhor em refúgio dos homens subjugados pelo sofrimento, pela injustiça e pela exclusão. Pessoalmente e em comunidade, somos convidados a inventar, criar e implementar projetos que visam marcar esta preocupação no nosso ministério, orações e devoções… Trata-se de aprimorar o nosso carisma de profetas de amor para dar início a projetos ou criar situações que possam eliminar ou aniquilar qualquer
gérmen capaz de gerar exclusões. Queremos pensar como podemos ser pessoas de visão, capazes de observar e de ler os sinais dos tempos para fortalecer o nosso carisma de servidores da reconciliação para irmos às periferias, como Cristo, e lutar ao lado das vítimas, tendo como armas as obras de misericórdia inspiradas no Coração misericordioso do Senhor.
Caros membros da Família Dehoniana, vamos nutrir esta nossa compaixão no Coração de Jesus para tornar possível, urgente e fecundo o nosso amor por cada pessoa ferida.
P. Heinrich Wilmer, scj (Superior Geral) e o seu Conselho
(http://www.dehon.it/it/index.php?option=com_k2&view=item&id=2282:lettera-per-il-14-marzo&Itemid=77).