LEIGOS E LEIGAS INSERIDOS NO CORAÇÃO DO MUNDO E NO CORAÇÃO DA IGREJA
O Ano do Laicato nos oferece a oportunidade de aprofundar alguns elementos teológicos sobre a identidade e missão dos leigos. Consequentemente, sobre o que é índole secular, os horizontes específicos de apostolado, as relações com os religiosos e ordenados. Enfim, possibilita que pensemos sobre a nossa vocação universal à santidade. Mas para que esse aprofundamento aconteça, é preciso ir para “águas mais profundas” (Lc 5, 4) e colocar-nos na presença e aos pés do Mestre para que ele nos ensine com suas palavras e gestos (cf. Lc 10, 38-42), mesmo que isso signifique ouvir “entre vós não deve ser assim” (Mt 20, 26) ou “se tu te convertes eu te converterei” (Jr 15, 19). Porém, passo a passo, Ele nos revela um caminho esplêndido, que vai se descortinando e nos dando acesso à ternura e ao mistério de seu Coração.
Da identidade cristã à índole e missão laical
Deus criou-nos semelhante a “uma gota d’água”. Quando sua “Luz” (sua Palavra) atravessa-nos, Ele torna possível que se manifeste quem somos (surge um “arco íris”), e por meio dele emerge nossa coloração constitutiva essencial e o Senhor revela ao ser humano Seu mistério e revela também para o ser humano sua identidade e dignidade.
Quando investigamos e vamos descrevendo esse “arco íris”, ou seja, o ser humano percebido – visto – pensado a partir da fé cristã, nós tomamos ciência que compartilhamos uma estruturação antropológica comum (Imago Dei), uma mesma Graça amorosa que nos alcança e nos preenche (Imago Unitatis – Trinitatis) e que também há uma só Iniciação Cristã para todos e esta nos insere no único Mistério Pascal de Jesus Cristo, que nos torna participantes da sua condição de Filho, Irmão e Livre: somos batizados e vinculados a uma mesma pia batismal (plenitude do vínculo filial em nós = Mt 11, 25ss; Mt 6, 9ss; Mc 6, 41; Rm 8, 15; 1Cor 1, 3); somos ungidos e vinculados a um mesmo ambão (plenitude do vínculo livre em nós = Lc 4, 18ss; Jo 10, 18; Mc 6, 35b-37a; 1Cor 6, 19; Rm 8, 1-2); somos eucaristizados e vinculados a um mesmo altar (plenitude do vínculo fraterno em nós – Mt 11, 29; Jo 15, 15; Mc 6, 34; Rm 8, 29; Rm 12, 10).
Participar da vida de Cristo significa também que fomos tornados potencialmente construtores do Reino de Deus, que fomos inseridos em Sua condição de Ministro do Reino: “Eis que venho, eu vim, ó Deus, para fazer tua vontade” (Hb 10, 7). Cristo revela que a construção de Reino se dá por meio de uma tríplice direcionalidade: ele anuncia o Reino nas situações cotidianas (Jo 4, 5-29), atualiza os horizontes e faz perceber novos caminhos para a implantação do Reino (Mt 15, 21-28) e cuida dos que servem ao Reino nas situações cotidianas e no trabalho de fronteira (Jo 21, 15).
Na Iniciação Cristã, somos vinculados a esta tríplice índole de Cristo: somos potencialmente “leigos” (anunciadores), “religio-sos” (atualizadores) e “ordenados” (cuidadores). As três índoles são originariamente de Cristo e não nossas (ele é “leigo”, “religioso” e “ordenado”). As índoles estão em nós porque são a vida de Cristo em nós! Por sermos inseridos na Iniciação Cristã na tríplice índole de Cristo, precisamos olhar para Ele para saber e perceber qual destas preside nossas vidas e por meio de qual direcionalidade iremos colaborar na construção do Reino.
A descoberta da índole aparece como um caminho de discernimento. A voz do Ressuscitado vem em nosso socorro, envolve-nos com sua Presença e convida-nos a ajudá-lo nisto que “vemos”, “ouvimos”, “tocamos”…, como o bom samaritano, Madalena que corre para anunciar aos Doze, dar pão aos pobres como os sete diáconos, as mulheres que o acompanhavam durante suas andanças… É como se Ele se mostrasse a nós como leigo, como religioso ou como ordenado e nos convidasse a viver com Ele e semelhante a Ele. Dá-se uma Cristofania: o Ressuscitado vem ao nosso encontro e nos ajuda a respondermos ao chamado ao Reino semelhantemente a Ele.
Nesse acontecimento cristofânico que se mostra como uma “Certeza de presença”, descobrimos a índole que preside nossas vidas: caberá, por fim, a nossa resposta, que poderá ser adequada ou não, harmônica ou não, sincera ou não à índole que contemplamos e descobrimos. Olhando para Jesus, para os carismas e as moções naturais presentes em nós, saberemos qual índole preside nossas vidas e como respondê-la, ou seja, como leigo, religioso ou ordenado. A índole não é uma imposição, mas uma possibilidade de contribuir com o Reino e viver semelhantemente a Cristo. O Senhor Ressuscitado acolhe nossa resposta seja ela definitiva ou processual.
Por isso, a índole secular vivida pelos leigos é tão cristológica quanto as índoles vividas pelos religiosos (atualizadora) e pelos ordenados (cuidadora). O leigo é um cristão (Iniciação Cristã: batizado, ungido, eucaristizado) que vive numa comunidade cristã peregrina e que responde ao chamado e ao envio do Senhor em ajudá-lo a edificar o Reino por meio da índole secular, semelhantemente a Ele que a tudo o que tocava, por onde passava (casas, beira do caminho, vilas, sentado com os doze, pescando etc.), fecundava com os valores do Reino!: “Em todos os batizados, desde o primeiro ao último, atua a força santificadora do Espírito que impele a evangelizar. Em virtude do Batismo recebido, cada membro do povo de Deus tornou-se discípulo missionário (cf. Mt 28, 19)” (Evangelii Gaudium 119-120).
O desafio de ser um verdadeiro fiel cristão leigo – numa sociedade que interpreta a vivência de fé como algo ultrapassado (“carola”, esquisito e contrário aos seus valores) e em uma comunidade de fé que precisa superar as tensões e a busca de poder -, é urgente e necessário. Dar o primeiro passo para se viver como verdadeiro fiel cristão leigo começa pela consciência de saber que se está na presença da Trindade, cantando oferecer-se (“Quem disse que não somos nada e que não temos nada para oferece, repare as nossas mãos abertas, trazendo as ofertas do nosso viver…”) e a partir desse encontro inserir-se no coração do mundo e no coração da Igreja e aí doar sua luminosidade (sua índole), ser “sal da terra e luz do mundo” (Mt 5, 14).
“Sei muito bem que isso pode parecer para alguns um desejo demasiado radical. Na prática significa para a maioria dos que começam com uma mudança na vida interior e na vida exterior. E isso é precisamente o que deve ser […]. Da satisfação própria de um ‘bom católico’ que cumpre com suas obrigações, que lê um bom jornal, que faz escolhas certas, porém, que sempre faz aquilo que gosta, há ainda um longo caminho para começar a viver nas mãos de Deus, com a sensibilidade de uma criança e a humildade de um publicano. Sem dúvida, quem começou a andar nesse caminho jamais o abandonará” (Edith Stein).
Dr. Eduardo Dalabeneta
Professor da Faculdade Dehoniana