SABERES E SABORES: SADIA ANCIANIDADE
A CORDA DE AREIA
Conta o Rabi Haggai, que existiu outrora, um país rico e próspero, chamado Kid-Elin. As caravanas que percorriam as estradas de Kid-Elin encontravam largas faixas de terras férteis e cultivadas.
A mocidade de Kid-Elin, inspirada pelo Demônio, tornou-se, entretanto, agressiva, pretensiosa e má.
Corrompida e envolvida pelo Mal, encheu-se de rancor e despeito contra os velhos.
“A velhice entrava o progresso!” – proclamavam os mais exaltados. – “Esse belo país, entregue aos moços, será mil vezes mais forte, mil vezes mais feliz e glorioso!”
O espírito surdo de revolta foi-se apoderando dos jovens. “Que lástima”” – diziam. -“Esse governo decrépito de anciãos” Que lástima!”
Não se sabe como, mas a inominável desgraça ocorreu. Precipitaram-se os acontecimentos. Por todos os recantos surgiam fanáticos e conspiradores.
“Eliminemos os velhos! Acabemos com essa velhice inútil.”
É triste relatar. Que nódoa para o mundo, que vergonha para a História! A mocidade de Kid-Elin, presa de terrível e sórdida alucinação, exterminou todos os seus velhos.
Todos, não. Houve um que se salvou da tragédia.
Vivia em Kid-Elin um rapaz chamado Zarmã que tinha por seu pai, homem bastante idoso, uma grande e sincera afeição. E, no dia da revolta, escondeu o velho no fundo de um subterrâneo, livrando–, assim, de cair em poder dos revoltosos assassinos. Para Zarmã a vida de seu pai era um segredo que ele não ousava revelar a ninguém.
Exterminados os velhos, o país de Kid-Elin passou a ser governado unicamente pelos moços, alegres e inexperientes. Para o cardo de Presidente da República elegeram um jovem de vinte e dois anos; o ministro mais amadurecido pela idade não completara dezoito; vários generais eram, apenas, adolescentes.
O Supremo Tribunal foi entregue a um rapaz de vinte anos incompletos; da direção do Banco Nacional encarregou-se um novato, que precisamente no dia da posse, festejava seus quinze anos!
Os juvenis governantes de Kid-Elin proclamaram com alvoroço a vitória: – Eis o único país do mundo que não tem velhos! Aqui é a mocidade que governa, resolve e desresolve!
Certas notícias correm pela terra com a rapidez do relâmpago pelo ar. No fim de poucas semanas, recebia o mundo a informação do movimento de Kid-Elin.
“Kid-Elin é o país dos jovens! Vamos todos para Kid-Elin.” E as estradas encheram-se de turistas e curiosos que iam em busca da nova República.
Mas para atrapalhar a grande alegria dos jovens senhores de Kid-Elin aconteceu um fato profundamente inquietante e desagradável. De Beluã, reino vizinho, foi enviada uma embaixada constituída de técnicos, advogados e economistas.
Essa embaixada, ao chegar, procurou o jovem Presidente de República e fê-lo ciente do que queriam. Tratava-se, apenas, do seguinte: O reino de Beluã, por seus legítimos representantes, exigia dos moços a devolução imediata de todas as terras que se estendiam para além do Rio Helvo.
E o chefe da embaixada exprimiu-se em termos bem claros, sem poesia e sem retórica:
“O governo beluanita, firmado em seus direitos, exige a entrega imediata do território em litígio. Temos um Tratado com Kid-Elin. Aqui estão os documentos.”
O Presidente, os Ministros e Magistrados de Kid-Elin examinaram os títulos e as escrituras. Tudo parecia claro, líquido, inquestionável. A República de Kid-Elin era obrigada a entregar ao seu poderoso vizinho, em virtude um acordo feito vinte anos antes, léguas e léguas de uma terra fértil e rica”
“Que fazer?” Seria a ruína para o país. Seria a desgraça para os jovens!
Foi então que o jovem Zarmã, que era o Ministro do Exterior, teve uma inspiração. Lembrou-se de seu velho pai.
“Vou consultá-lo sobre esse caso” – pensou. “Meu pai, com a experiência que tem da vida, saberá descobrir uma solução para essa questão das terras do Rio Helvo.”
E o dedicado Zarmã disse ao Presidente, Ministros e Embaixadores:
“Vou meditar sobre a grave reclamação de nossos vizinhos. Estudarei os documentos apresentados, e amanhã darei o meu parecer sobre essa grave situação.”
Correu Zarmã ao subterrâneo secreto em que vivia seu pai e fê-lo sabedor de tudo o que ocorria.
“É singular….!” ponderou o velho.
“Nunca se viu, meu filho, sob o céu que cobre o mundo, tamanho atrevimento e tamanha desfaçatez! Como ousam esses incríveis beluanitas exigir a entrega das terras banhadas pleo Helvo? É o cúmulo do cinismo e da sem-sem-vergonhice! Julgam, certamente, que só há moços neste país!”
“Que devemos fazer, meu pai? A documentação por eles exibida parece clara e irrespondível!” disse Zarmã.
Respondeu o ancião, imperturbável, numa voz que mal disfarçava a ira:
“Parecem neste caso, aparências forjadas pela má fé, para ocultarem a verdade.”
E falou, depois de alguns segundos de silêncio profundo, como se uma inspiração o iluminasse:
“Amanhã, meu filho, receberás com grande serenidade os arrogantes embaixadores de Beluã e a eles dirás, com absoluta firmeza, o seguinte: – A nossa República de jovens está resolvida a devolver o território por vós reclamado. Exige, porém que o Reino de Beluã cumpra, na íntegra, os seus compromissos e devolva, intacta, a corda de areia!”
“Corda de areia?” – estranhou o moço roído de curiosidade.
“O quê quer dizer isto, meu pai? Em que consiste essa corda de areia?”
“Mais tarde, meu filho – respondeu o velho – mais tarde entrarás também na posse desse precioso segredo. Por ora é cedo. Segue o meu conselho, e tudo estará resolvido para o bem de nossos patrícios!”
Cega era a confiança que Zarmã depositava em seu pai. No dia seguinte, recebeu a embaixada reclamante, e na presença dos jovens Presidente, ministros, magistrados, generais e altos funcionários repetiu fielmente as palavras que ouvira do ancião:
“A República de Kid-Elin está resolvida a devolver o território por vós reivindicado. Exige, porém, que o Reino de Beluã cumpra, na íntegra, os seus compromissos e devolva, intacta, a corda de areia!”
Ao ouvirem tal sentença, mostraram-se alarmadíssimos os embaixadores beluanitas. Aquela exigência final, expressa pela exigência da devolução da corda de areia, caiu como uma bomba no meio deles. O chefe da embaixada ficou pálido e trêmulo. E depois de trocar algumas palavras, em voz baixa, com seus conselheiros e ajudantes, assim falou de rompante, muito nervoso:
“Desistimos de nosso pedido. Podeis conservar, para sempre, o território do Helvo, com todos os seus campos e searas.”
Neste ponto fez o estrangeiro uma pausa, e logo falou com voz exaltada, cortante de ironia e rancor.
“Cabe-me, entretanto, desmentir as notícias divulgadas pelos vossos agentes e emissários. Posso jurar que a República dos jovens não existe. Tudo mentira! Há velhos, ainda neste país!”
Mas, afinal, que significa isso: Corda de Areia?
Eis o segredo que o Tempo, e só o tempo, se encarregará de revelar aos jovens. A velhice é um tesouro. Tesouro de sabedoria, discernimento e discrição. Sem o amparo seguro da velhice, a parcela jovem da humanidade estaria perdida e extraviada pelos descaminhos da vida. É a velhice que sabe onde encontrar essa maravilhosa corda de areia que liga o Passado ao Presente e enlaça o Presente com o Futuro.
E o bondoso e paciente rabi Haggai repetia quarenta vezes falando aos discípulos atentos: “Lembrai-vos, meus jovens amigos, lembrai-vos sempre da “corda de areia.”
Do livro Lendas do Povo de Deus, de Malba Tahan (https://encantadorasdehistorias.wordpress.com/).