Natal de Nosso Senhor Jesus Cristo
Ano B
Natal de Nosso Senhor Jesus Cristo
Tema da “Missa do Dia”
A liturgia deste dia é, toda ela, um hino ao amor de Deus. Canta a iniciativa desse Deus que, por amor, se vestiu da nossa humanidade e “estabeleceu a sua tenda entre nós”. Em Jesus, o menino nascido em Belém, Deus veio ter connosco e falou-nos, com palavras e gestos humanos, para nos oferecer a Vida plena e para nos elevar à dignidade de “filhos de Deus”.
Na primeira leitura, Isaías anuncia a chegada do Deus libertador. Ele é o rei que traz a paz e a salvação, proporcionando ao seu Povo uma era de felicidade sem fim. O profeta convida, pois, a substituir a tristeza pela alegria, o desalento pela esperança.
A segunda leitura apresenta, em traços largos, o plano salvador de Deus. Insiste, sobretudo, que esse projeto alcança o seu ponto mais alto com o envio de Jesus, a “Palavra” de Deus que os homens devem escutar e acolher.
O Evangelho desenvolve o tema esboçado na segunda leitura e apresenta a “Palavra” viva de Deus, tornada pessoa em Jesus. Sugere que a missão do Filho, “Palavra” viva de Deus, é completar a criação primeira, eliminando tudo aquilo que se opõe à vida e criando condições para que nasça o Homem Novo, o homem da vida em plenitude, o homem que vive uma relação filial com Deus.
LEITURA II – Isaías 52,7-10
Como são belos sobre os montes
os pés do mensageiro que anuncia a paz,
que traz a boa nova, que proclama a salvação
e diz a Sião: «O teu Deus é Rei».
Eis o grito das tuas sentinelas que levantam a voz.
Todas juntam soltam brados de alegria,
porque veem com os próprios olhos
o Senhor que volta para Sião.
Rompei todas em brados de alegria, ruínas de Jerusalém,
porque o Senhor consola o seu povo,
resgata Jerusalém.
O Senhor descobre o seu santo braço à vista de todas as nações,
e todos os confins da terra verão a salvação do nosso Deus.
CONTEXTO
Entre 586 e 539 a.C., o Povo de Deus experimenta a dura prova do Exílio na Babilónia. À frustração pela derrota e pela humilhação nacional, juntam-se as saudades de Jerusalém e o desespero por saber a cidade de Deus – orgulho de todo o israelita – reduzida a cinzas. Aos exilados, parece que Deus os abandonou definitivamente e que desistiu de Judá; alguns perguntam mesmo se Javé será o Deus libertador – como anunciava a teologia de Israel – ou será um “bluff”, incapaz de proteger o seu Povo e de salvar Judá. Rodeado de inimigos, perdido numa terra estranha, ameaçado na sua identidade, sem perspetivas de futuro, com a fé abalada, Judá está desolado e abandonado e não vê saída para a sua triste situação. Quando, já na fase final do Exílio, as vitórias de Ciro, rei dos Persas, anunciam o fim da Babilónia, os exilados começam a ver uma pequenina luz ao fundo do túnel; mas, então, a libertação aparece-lhes como o resultado da ação de um rei estrangeiro e não como resultado da intervenção libertadora de Deus… Ora, isso agrava ainda mais a crise de confiança em Javé por parte dos exilados.
É neste contexto que aparece o testemunho profético do Deutero-Isaías. A sua mensagem nunca abandona o tom da consolação e da esperança (os capítulos que recolhem a palavra do Deutero-Isaías são, precisamente, conhecidos como “Livro da Consolação” – cf. Is 40-55); garante aos exilados que a libertação está próxima e é obra de Javé.
O texto integra a segunda parte do “Livro da Consolação” (Is 49-55). Aí, o profeta, que na primeira parte (Is 40-48) havia, sobretudo, anunciado a libertação do cativeiro e um “novo êxodo” do Povo de Deus rumo à Terra Prometida, fala da reconstrução e da restauração de Jerusalém. O profeta garante que Deus não Se esqueceu da sua cidade em ruínas e vai voltar a fazer dela uma cidade bela e cheia de vida, como uma noiva em dia de casamento.
MENSAGEM
Para revitalizar a esperança dos exilados, o profeta põe-nos a contemplar um quadro, fictício, mas sugestivo quanto ao significado: à Jerusalém desolada e em ruínas, chega um mensageiro com uma “boa notícia”. Qual é essa “boa notícia”? Ele anuncia “a paz” (“shalom”: paz, bem-estar, harmonia, felicidade), proclama a “salvação” e promete o “reinado de Deus”. Deus assume-Se, portanto, como “rei” de Judá… Ele não reinará à maneira daqueles reis que conduziram o Povo por caminhos de egoísmo e de morte, de desgraça em desgraça até à catástrofe final do Exílio; mas Javé exercerá a realeza de forma a proporcionar a “salvação” ao seu Povo, isto é, inaugurando uma era de paz, de bem-estar, de felicidade sem fim.
Num desenvolvimento muito belo, o profeta/poeta põe as sentinelas da cidade (alertadas pelo anúncio do “mensageiro”) a olhar na direção em que deve chegar o Senhor. De repente, soa o grito dessas sentinelas… Não é um grito de alarme, mas de alegria contagiante: elas veem o próprio Javé chegar e apresentar-se às portas da cidade, preparado para entrar. Com Deus, Jerusalém voltará a ser uma cidade bela e harmoniosa, cheia de alegria e de festa. Finalmente, o profeta/poeta convida as próprias pedras da cidade em ruínas a cantar em coro, porque a libertação chegou. E a salvação que Deus oferece à sua cidade e ao seu Povo será testemunhada por toda a terra, como se o mundo estivesse de olhos postos na ação vitoriosa de Deus em favor de Judá.
INTERPELAÇÕES
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A alegria pela libertação do cativeiro da Babilónia e pela “salvação” que Deus oferece ao seu Povo anuncia essa outra libertação, plena e total, que Deus vai oferecer ao seu Povo através de Jesus. É isso que celebramos hoje: o nascimento de Jesus significa que a opressão terminou, que chegou a paz definitiva, que o “reinado de Deus” alcançou a nossa história. Para que essa “boa notícia” se cumpra é, no entanto, necessário que nos disponibilizemos para acolher Jesus e para aderir ao “Reino” que Ele veio propor.
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A alegria contagiante das sentinelas e os brados de contentamento das próprias pedras da cidade convidam-nos a acolher em festa o Deus que veio libertar-nos… Se temos consciência da opressão que, dia a dia, nos rouba a vida e nos impede de ser livres e felizes, certamente sentiremos um grande contentamento ao deparar com essa proposta de liberdade e de vida nova que Jesus veio trazer. Neste dia de Natal, a alegria que me enche o coração resulta da presença de Jesus na minha vida, ou resulta de valores mais efémeros e mais fúteis, ligados à vertigem consumista que alguns colam a esta festa?
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As sentinelas atentas que, nas montanhas em redor de Jerusalém, identificam a chegada do Deus libertador são um modelo para nós: convidam-nos a ler atentamente os sinais da presença libertadora de Deus no mundo e a anunciar a todos os homens que Deus aí está, para reinar sobre nós e para nos oferecer a salvação e a paz. Somos sentinelas atentas que descobrem os sinais do Senhor nos caminhos da história e anunciam o seu “reinado”, ou somos sentinelas negligentes que não vigiam nem alertam e que, com a sua “demissão”, deixam que o Deus libertador seja acolhido com indiferença pelo povo da “cidade”?
SALMO RESPONSORIAL – Salmo 97 (98)
Refrão: Todos os confins da terra
viram a salvação do nosso Deus.
Cantai ao Senhor um cântico novo
pelas maravilhas que Ele operou.
A sua mão e o seu santo braço
Lhe deram a vitória.
O Senhor deu a conhecer a salvação,
revelou aos olhos das nações a sua justiça.
Recordou-Se da sua bondade e fidelidade
em favor da casa de Israel.
Os confins da terra puderam ver
a salvação do nosso Deus.
Aclamai o Senhor, terra inteira,
exultai de alegria e cantai.
Cantai ao Senhor ao som da cítara,
ao som da cítara e da lira;
ao som da tuba e da trombeta,
aclamai o Senhor, nosso Rei.
LEITURA II – Hebreus 1,1-6
Muitas vezes e de muitos modos
falou Deus antigamente aos nossos pais, pelos Profetas.
Nestes dias, que são os últimos,
falou-nos por seu Filho,
a quem fez herdeiro de todas as coisas
e pelo qual também criou o universo.
Sendo o Filho esplendor da sua glória
e imagem da sua substância,
tudo sustenta com a sua palavra poderosa.
Depois de ter realizado a purificação dos pecados,
sentou-Se à direita da Majestade no alto dos Céus
e ficou tanto acima dos Anjos
quanto mais sublime que o deles
é o nome que recebeu em herança.
A qual dos Anjos, com efeito, disse Deus alguma vez:
«Tu és meu Filho, Eu hoje Te gerei»?
E ainda: «Eu serei para Ele um Pai
e Ele será para Mim um Filho»?
E de novo,
quando introduziu no mundo o seu Primogénito, disse:
«Adorem-n’O todos os Anjos de Deus».
CONTEXTO
A Carta aos Hebreus é um escrito de autor anónimo e cujos destinatários, em concreto, desconhecemos (o título “aos hebreus” provém das múltiplas referências ao Antigo Testamento e ao ritual dos “sacrifícios” que a obra apresenta). É possível que se dirija a uma comunidade cristã constituída maioritariamente por cristãos vindos do judaísmo; mas nem isso é totalmente seguro, uma vez que o Antigo Testamento era um património comum, assumido por todos os cristãos – quer os vindos do judaísmo, quer os vindos do paganismo. Trata-se, em qualquer caso, de cristãos em situação difícil, expostos a perseguições e que vivem num ambiente hostil à fé… São também cristãos que facilmente se deixam vencer pelo desalento, que perderam o fervor inicial e que cedem às seduções de doutrinas não muito coerentes com a fé recebida dos apóstolos… O objetivo do autor é estimular a vivência do compromisso cristão e levar os crentes a crescer na fé. Para isso, expõe o mistério de Cristo (apresentado, sobretudo, como “o sacerdote” da Nova Aliança) e recorda a fé tradicional da Igreja.
O texto que nos é hoje proposto pertence ao prólogo do sermão. Nesse prólogo, o pregador apresenta a visão global e as coordenadas fundamentais que ele vai, depois, desenvolver ao longo da obra.
MENSAGEM
Temos aqui esboçadas, em traços largos, as coordenadas fundamentais da história da salvação. Deus é o protagonista principal dessa história…
O texto alude ao projeto salvador de Deus. Esse projeto manifestou-se, numa primeira fase, através dos porta-vozes de Deus – os profetas; eles transmitiram aos homens a proposta salvadora e libertadora de Deus.
Veio, depois, uma segunda etapa da história da salvação: “nestes dias que são os últimos”, Deus manifestou-Se através do próprio “Filho” – Jesus Cristo, o “menino de Belém”, a Palavra plena, definitiva, perfeita, através da qual Deus vem ao nosso encontro para nos “dizer” o caminho da salvação e da vida nova. O nosso texto reflete então – sem, contudo, desenvolver uma lógica muito ordenada – sobre a relação de Jesus com o Pai, com os homens e com os anjos (o que nos situa no ambiente de uma comunidade que dava importância significativa ao culto dos “anjos” e que lhes concedia um papel preponderante na salvação do homem).
Como é que se define a relação de Jesus com o Pai? Para o autor da Carta aos Hebreus, Jesus, o “Filho”, identifica-Se plenamente com o Pai. Ele é o esplendor da glória do Pai, a imagem do ser do Pai, a reprodução exata e perfeita da substância do Pai: desta forma, o autor da carta afirma que Jesus procede do Pai e é igual ao Pai. N’Ele manifesta-Se o Pai; quem olha para Ele, encontra o Pai.
Definida a relação de Jesus com Deus, o autor reflete sobre a relação de Jesus com o mundo… O Filho está na origem do universo e, portanto, também do homem; por isso, Ele tem um senhorio pleno sobre toda a criação. Essa soberania expressa-se, inclusive, na incarnação e redenção: Ele veio ao encontro do homem e purificou-o do pecado: dessa forma, completou a obra começada pela Palavra criadora de Deus, no início. É como “o Senhor” – isto é, Aquele que possui soberania sobre os homens e sobre o mundo – que os homens O devem ver e acolher.
A igualdade fundamental do “Filho” com o Pai fá-lo muito superior aos anjos: os anjos não são “filhos”; mas Jesus é “o Filho” e o próprio Deus proclamou essa relação de filiação plena, real, perfeita. Não são os anjos que salvam, mas sim “o Filho”.
Sendo a Palavra última e definitiva de Deus, Ele deve ser escutado pelos homens como o caminho mais seguro para chegar a essa Vida nova que o Pai nos quer propor. É tendo consciência desse facto que devemos acolher o “menino de Belém”.
INTERPELAÇÕES
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No dia de Natal faz todo o sentido revisitarmos a história da salvação… Ao mergulhar nessa extraordinária história percebemos que, desde os primeiros passos da humanidade, Deus Se mostrou interessado em romper as distâncias, em aproximar-Se dos homens, em estabelecer com eles um diálogo, em mostrar-lhes o caminho que conduz à Vida verdadeira. Só o amor – o amor infinito que dedica aos seus filhos e filhas – explica esse envolvimento de Deus. É bom saber que não andamos sozinhos e sem rumo neste caminho nem sempre linear por onde peregrinamos. Deus vai connosco; Deus, com a criatividade do amor, está sempre a inventar formas de vir ao nosso encontro e de nos abraçar. Hoje é dia de nos sentirmos profundamente agradecidos pela sua presença amorosa de Deus nas nossas vidas.
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Jesus Cristo é a Palavra viva e definitiva de Deus, que revela aos homens o verdadeiro caminho para chegar à salvação. Celebrar o seu nascimento é acolher essa Palavra viva de Deus… “Escutar” essa Palavra é acolher o projeto que Jesus veio apresentar e fazer dele a nossa referência, o critério fundamental que orienta as nossas atitudes e as nossas opções. A Palavra viva de Deus (Jesus) é, de facto, a nossa referência? O que Ele diz orienta e condiciona as minhas atitudes, os meus valores, as minhas tomadas de posição? Os valores do Evangelho são os meus valores? Vejo no Evangelho de Jesus a Palavra viva de Deus, a Palavra plena e definitiva através da qual Deus me diz como chegar à salvação, à vida definitiva?
ALELUIA – João 1,1-18
Aleluia. Aleluia.
Santo é o dia que nos trouxe a luz.
Vinde adorar o Senhor.
Hoje, uma grande luz desceu sobre a terra.
EVANGELHO – João 1,1-18
No princípio era o Verbo
e o Verbo estava com Deus
e o Verbo era Deus.
No princípio, Ele estava com Deus.
Tudo se fez por meio d’Ele
e sem Ele nada foi feito.
N’Ele estava a vida
e a vida era a luz dos homens.
A luz brilha nas trevas,
e as trevas não a receberam.
Apareceu um homem enviado por Deus, chamado João.
Veio como testemunha,
para dar testemunho da luz,
a fim de que todos acreditassem por meio dele.
Ele não era a luz,
mas veio para dar testemunho da luz.
O Verbo era a luz verdadeira,
que, vindo ao mundo, ilumina todo o homem.
Estava no mundo,
e o mundo, que foi feito por Ele, não O conheceu.
Veio para o que era seu,
e os seus não O receberam.
Mas, àqueles que O receberam e acreditaram no seu nome,
deu-lhes o poder de se tornarem filhos de Deus.
Estes não nasceram do sangue,
nem da vontade da carne, nem da vontade do homem,
mas de Deus.
E o Verbo fez-Se carne e habitou entre nós.
Nós vimos a sua glória,
glória que Lhe vem do Pai como Filho Unigénito,
cheio de graça e de verdade.
João dá testemunho d’Ele, exclamando:
«Era deste que eu dizia:
‘O que vem depois de mim passou à minha frente,
porque existia antes de mim’».
Na verdade, foi da sua plenitude que todos nós recebemos
graça sobre graça.
Porque, se a Lei foi dada por meio de Moisés,
a graça e a verdade vieram por meio de Jesus Cristo.
A Deus, nunca ninguém O viu.
O Filho Unigénito, que está no seio do Pai,
é que O deu a conhecer.
CONTEXTO
A Igreja primitiva recorreu, com frequência, a hinos para celebrar, expressar e anunciar a sua fé. O prólogo ao Evangelho segundo João é um desses hinos.
Não sabemos ao certo se este hino foi composto por João, ou se o autor do Quarto Evangelho usou um primitivo hino cristão conhecido da comunidade joânica, adaptando-o de forma a que ele pudesse servir de prólogo à sua obra. O que é certo é que o hino cristológico que chegou até nós expressa, em forma de confissão, a fé da comunidade joânica em Cristo enquanto Palavra viva de Deus, a sua origem eterna, a sua procedência divina, a sua influência no mundo e na história, possibilitando aos homens que O acolhem e escutam tornarem-se “filhos de Deus”. Essas grandes linhas, enunciadas neste prólogo, vão depois ser desenvolvidas pelo evangelista ao longo da sua obra.
MENSAGEM
O prólogo ao Quarto Evangelho começa com a expressão “no princípio”: dessa forma, João enlaça o seu Evangelho com o relato da criação (cf. Gn 1,1), oferecendo-nos assim, desde logo, uma chave de interpretação para o seu escrito… Aquilo que ele vai narrar sobre Jesus está em relação com a obra criadora de Deus: em Jesus vai acontecer a definitiva intervenção criadora de Deus no sentido de dar vida ao homem e ao mundo… A atividade de Jesus, enviado do Pai, consiste em fazer nascer um homem novo; a sua ação coroa a obra criadora iniciada por Deus “no princípio”.
João apresenta, logo a seguir, a “Palavra” (“Lógos”). A “Palavra” é, de acordo com o autor do Quarto Evangelho, uma realidade anterior ao céu e à terra, implicada já na primeira criação. Esta “Palavra” apresenta-se com as caraterísticas que o “Livro dos Provérbios” atribuía à “sabedoria”: pré-existência (cf. Pr 8,22-24) e colaboração com Deus na obra da criação (cf. Pr 8,24-30). No entanto, essa “Palavra” não só estava junto de Deus e colaborava com Deus, mas “era Deus”. Identifica-se totalmente com Deus, com o ser de Deus, com a obra criadora de Deus. É como que o projeto íntimo de Deus, que se expressa e se comunica como “Palavra”. Deus faz-Se inteligível através da “Palavra”. Essa “Palavra” é geradora de vida para o homem e para o mundo, concretizando o projeto de Deus.
Essa “Palavra” veio ao encontro dos homens e fez-se “carne” (pessoa). João identifica claramente a “Palavra” com Jesus, o “Filho único cheio de amor e de verdade”, que veio ao encontro do homem. Nessa pessoa (Jesus), podemos contemplar o projeto ideal de homem, o homem que nos é proposto como modelo, a meta final da criação de Deus.
Essa “Palavra” “estabeleceu a sua tenda entre nós”. O verbo “skênéô” (“montar a tenda”) aqui utilizado alude à “tenda do encontro” que, na caminhada pelo deserto, os israelitas montavam no meio ou ao lado do acampamento e que era o local onde Deus residia no meio do seu Povo (cf. Ex 27,21; 28,43; 29,4…). Agora, a “tenda de Deus”, o local onde Ele habita no meio dos homens é o Homem/Jesus. Quem quiser encontrar Deus e receber d’Ele vida em plenitude (“salvação”), é para Jesus que se tem de voltar.
A função dessa “Palavra” está ligada ao binómio “vida/luz”: comunicar ao homem a vida em plenitude; ou, por outras palavras, trata-se de acender a luz que ilumina o caminho do homem, possibilitando-lhe encontrar a vida verdadeira, a vida plena.
Jesus Cristo vai, no entanto, deparar-Se com a oposição à “vida/luz” que Ele traz. Ao longo do Evangelho, João irá contando essa história do confronto da “vida/luz” com o sistema injusto e opressor que pretende manter os homens prisioneiros do egoísmo e do pecado e que João identifica com a Lei; os dirigentes judeus que enfrentam Jesus e o condenam à morte são o rosto visível dessa Lei. Recusar a “vida/luz” significa preferir continuar a caminhar nas trevas, que se identificam com a mentira, a escravidão e a opressão, à margem de Deus; significa recusar chegar a ser homem pleno, livre, criação acabada e elevada à sua máxima potencialidade.
Em contrapartida, o acolhimento da “Palavra” implica a participação na vida de Deus. João diz mesmo que acolher a “Palavra” significa tornar-se “filho de Deus”. Começa, para quem acolhe a “Palavra”/Jesus, uma nova relação entre o homem e Deus, aqui expressa em termos de filiação: Deus dá vida em plenitude ao homem, oferecendo-lhe, assim, uma qualidade de vida que potencia o seu ser e lhe permite crescer até à dimensão do homem novo, do homem acabado e perfeito. Isto é uma “nova criação”, um novo nascimento, que não provém da carne e do sangue, mas sim de Deus.
A encarnação de Jesus significa, portanto, que Deus oferece à humanidade a possibilidade de se realizar plenamente, de chegar à Vida em plenitude. Sempre existiu no homem o anseio da vida plena, conforme o projeto original de Deus; mas, na prática, esse anseio fica, muitas vezes, frustrado pelo domínio que o egoísmo, a injustiça, a mentira – numa palavra, o “pecado” – exercem sobre o homem. Toda a obra de Jesus consistirá em capacitar o homem para a Vida nova, para a Vida plena, a fim de que ele possa realizar em si mesmo o projeto de Deus: a semelhança com o Pai.
INTERPELAÇÕES
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A transformação da “Palavra” em “carne”, em “menino” do presépio de Belém, é a espantosa aventura de um Deus que ama até ao inimaginável e que, por amor, aceita revestir-Se da nossa fragilidade, a fim de nos dar Vida em plenitude. Deus desceu até nós e revestiu-se da nossa fragilidade para ficar ao nosso lado: neste dia, somos convidados a contemplar, numa atitude de serena adoração, esse incrível passo de Deus, expressão extrema de um amor sem limites. E essa adoração deve depois expressar-se em louvor e ação de graças. Que o dia de Natal seja o dia por excelência de agradecermos a Deus o seu amor.
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Acolher a “Palavra” é deixar que Jesus nos transforme, nos dê a vida plena, a fim de nos tornarmos, verdadeiramente, “filhos de Deus”. O presépio que hoje contemplamos é apenas um quadro bonito e terno, ou uma interpelação a acolher a “Palavra”, de forma a crescermos até à dimensão do Homem Novo?
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Hoje, como ontem, a “Palavra” continua a confrontar-se com os sistemas geradores de morte e a procurar eliminar, na origem, tudo o que rouba a vida e a felicidade da pessoa. Sensíveis à “Palavra”, embarcados na mesma aventura de Jesus – a “Palavra” viva de Deus – como nos situamos diante de tudo aquilo que rouba a vida da pessoa? Podemos pactuar com a mentira, o oportunismo, a violência, a exploração dos pobres, as limitações aos direitos e à dignidade do homem?
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Jesus é para nós a “Palavra” suprema que dá sentido à nossa vida, ou deixamos que outras “palavras” nos condicionem e nos induzam a procurar a felicidade em caminhos de egoísmo, de alienação, de comodismo, de pecado? Quais são essas “palavras” que às vezes nos seduzem e nos afastam da “Palavra” eterna de Deus que ecoa no Evangelho que Jesus veio propor?