ORDENADO PARA O SERVIÇO DO POVO DE DEUS
A bíblia prescreve que a cada 50 anos o povo de Israel devia celebrar o JUBILEU para renovar a fidelidade ao projeto de Deus e à aliança. De modo semelhante, aos 50 anos do meu sacerdócio quero confirmar a minha adesão ao projeto de Deus. Em 1969 fui ordenado tendo como lema: “ordenado para o serviço do povo de Deus”.
Saúdo cordialmente meus colegas presbíteros, especialmente Dom Antônio, bispo emérito, exemplo de longevidade. Saúdo Dom Carmo, companheiro de diversas fases de minha formação: Corupá, Brusque, Roma, colega de magistério aqui em Taubaté, além de amigo e confidente.
Como disse Thomas Merton “Home algum é uma ilha”. Ninguém nasce pessoa madura. A personalização é um processo para o qual contribuem muitas pessoas. Segundo Charles Chaplin, “todo contato deixa uma marca”. Imaginem, então, quanto eu devo a tantos contatos e convivência com colegas presbíteros, com os confrades, os alunos da Faculdade: Fui enriquecido por muitas pessoas, de modo que esta celebração é, de fato, uma concelebração.
Fazendo um retrospecto de minha vida constato que tenho muito a agradecer porque além do chamado inicial reconheço hoje a ação da providência em diversos momentos minha vida. Ao mesmo tempo devo pedir perdão por não ter sido aquilo que eu queria e deveria ser. Constatei a duras penas que o caminho para a santidade é um caminho árduo e longo. O ativismo no qual me senti envolvido como pároco de Redenção da Serra (28 anos) e ao mesmo tempo como professor (44 anos) me deixava pouco tempo para a oração pessoal e a contemplação. Eu quase que só tinha tempo para trabalhar. Assim sendo tive que aprender a viver do perdão e da misericórdia. Neste momento quero me penitenciar junto a Deus e a vocês pelo que eu queria ser e não fui.
Agradecer a Deus por ocasião de um jubileu pode parecer uma praxe formal, um lugar comum. Mas para mim é realmente um dever. Desde que me entendo como gente eu queria ser o que vim a ser, nunca pensei em outra coisa. Diria até que fazia parte do meu DNA. Na minha inocência me deixei seduzir (Jr 20,7). Era o chamado de Deus. Este jogo de sedução é talvez o que chamamos de “encontro pessoal com Cristo”. Este chamado foi a melhor coisa que aconteceu em minha vida. Não consigo imaginar o que eu seria se não tivesse seguido esta vocação. Confesso que nunca tive um “plano B” para a minha vida. Mas devo acrescentar uma coisa: não basta vestir a camisa do time de Jesus, é preciso suá-la. E eu ouso dizer que a suei.
Tive a graça de viver em Roma durante o Concílio Vaticano II e acompanhar a discussão sobre os ministérios na Igreja. A Lumen gentium mudou a concepção da Igreja como sociedade perfeita pela de “Povo de Deus”. Ao mesmo tempo ela valorizou novamente a função profética do ministro ordenado, nomeando-a diversas vezes em primeiro lugar. Preferiu inclusive a linguagem presbiteral à linguagem sacerdotal. Era uma mudança considerável em relação à concepção tridentina que havia definido o ministério ordenado pelo poder sobre o corpo eucarístico de Cristo.
Esta concepção tridentina do ministério ordenado como sacerdote sacramentava uma longa tradição marcada pela sacerdotalização do ministério ordenado, deixando em segundo plano, senão deixando até se perder, a função profética. Cristãos eram ordenados para o serviço do altar e não para o serviço da palavra.
Devido à falta do anúncio da palavra de Deus e do testemunho profético, a Igreja tem perdido força e adeptos. É preciso que a Igreja seja sacramento histórico de salvação. Então não basta administrar os sacramentos no interior das Igrejas para ser sacramento de salvação e da unidade do gênero humano. Padre Dehon diria é preciso sair da sacristia e ir ao povo.
Assim sendo, o sacerdócio tal como pensado e vivido hoje, deve ser repensado. Repensado e entendido no estilo de Jesus Cristo, que embora fosse leigo, tonou-se sacerdote pela sua vida de oblação; de Paulo, leigo também ele, que prolongou em sua vida o sacerdócio de Jesus, não por força de alguma ordenação ou porque presidia ocasionalmente a eucaristia, mas porque também ele fez de sua vida uma oblação, sendo que o seu sacerdócio consistiu no serviço ao evangelho. Em Fl 2,17 ele diz “E mesmo que meu sangue deva ser derramado em libação no sacrificio e no serviço de vossa fé” e, em 2Tm 4,6, ele diz: “Quanto a mim eis que já fui imolado em libação e o tempo da minha partida chegou”.
Portanto, seja no caso de Cristo como no de Paulo, vem primeiro o sacerdócio da vida (dedicação ao evangelho, oblação) e depois o sacerdócio do culto.
Paulo repassa o seu ministério aos presbíteros, incumbindo-os de dirigir as comunidades, preservar a Tradição apostólica, e dar testemunho da Palavra até o martírio se for o caso (At 20,28-30). Vemos, pois, que o ministério do Novo Testamento não nasce em torno do altar, mas em torno do governo das comunidades, (preservar a sua apostolicidade) e do anúncio da palavra.
O sacerdócio levítico instituído por Moisés para garantir a mediação entre Deus e os homens fracassou porque os sacerdotes se desligaram do povo e se tornaram meros funcionários do sagrado, a serviço de uma religião formalista e ritualista: oferecer sacrifícios. O lugar deles foi ocupado pelos profetas que eram intercessores e tinham uma notável experiência de Deus. Caso emblemático é o Servo de Javé: sem ser sacerdote, ele desempenhou a função de sacerdote visto que ofereceu sua vida em sacrifício expiatório. Nele o profetismo se tornou claramente sacerdotal.
Como é sabido, Jesus era leigo, líder de um movimento de leigos. Por seu nascimento pertencia à tribo de Judá e não de Levi. E, no entanto, o ministério sacerdotal da Nova Aliança tem o seu fundamento em Jesus Cristo; isto porque ele foi um profeta que proclamava a palavra de Deus e denunciava corajosamente as forças do anti-reino. Além disso ele fez a purificação do templo decretando o fim da liturgia baseada em sacrifício de animais e inaugurando um novo culto em espírito e verdade.
Jesus inaugurou um novo sacerdócio, um sacerdócio baseado na vida, e não num rito. Por isso a pregação cristã antiga, para definir a pessoa de Jesus e sua obra recorreu não a uma linguagem sacrificial, mas sim a uma linguagem messiânica e existencial. É verdade que na segunda camada do NT, sobretudo na carta aos hebreus se interpretou explicitamente a obra de Jesus como sacerdotal mas não no sentido ritual do A.T.. É verdade também que os primeiros dirigentes cristãos não foram designados com uma linguagem sacerdotal. Os textos falam de apóstolos, diáconos, servidores, inspetores, presbíteros, líderes, evangelistas, doutores, etc.
O NT não fala de um vínculo entre o ministério de presbítero-bispo, de um lado e a eucaristia, de outro, É provável que os presidentes das comunidades presidissem também a eucaristia. Também não é a presidência da eucaristia que faz do presbítero-bispo um sacerdote.
A partir do século IV se acentua sempre mais um movimento que se pode chamar de sacerdotalização do ministério do NT. Era uma volta ao A.T. Na medida que este movimento foi se acentuando passam a um segundo plano a pregação e o governo. A evangelização, sobretudo fora das fronteiras da Igreja, pouca ou nenhuma importância passa a ter. E com uma Igreja aliada ao poder, a função profética, que segundo o testemunho da história, dificilmente se harmonizava com a função sacerdotal, se apagava sempre mais. No concílio de Trento consumava-se a passagem de uma linguagem presbiteral para uma linguagem sacerdotal: “Há na Igreja um novo sacerdócio instituído por Cristo com o poder de consagrar, oferecer e administrar o corpo e sangue do Senhor, assim como o poder de perdoar ou reter pecados”.
O Vaticano II desencadeou uma reflexão crítica a respeito do grande movimento de “sacerdotalização” do ministério ordenado, fazendo sua a linguagem do NT. Neste sentido o Concílio prefere sistematicamente falar do ministério dos padres e do ministério pastoral dos bispos, em vez de sacerdócio dos padres e dos bispos. A linha propriamente conciliar do Vaticano II não é a do sacerdócio, mas sim a do ministério.
É sintomática também a re-introdução da linguagem presbiteral no lugar da linguagem sacerdotal, o que vem expresso claramente no decreto Presbiterorum Ordinis (votado pelo Concílio em 1965). Na mesma linha segue o documento nº 20 da CNBB : Vida e ministério do presbítero. A linguagem presbiteral tornou-se comum nos documentos do episcopado.
Com a renovação na teologia dos ministérios ordenados, promovida pelo Vat II, a função profética, ou seja, o anúncio/denúncia da Palavra de Deus voltou ao seu lugar natural, o primeiro e fundamental, antes do sacramento. Com isso a Igreja começava a preencher uma lacuna que se formara durante séculos.
Na Evangelii nuntiandi de Paulo VI se lê (n.14): “A Igreja existe para evangelizar”. João Paulo II escrevia na Catechesi tradendae em 1979 que muitos cristãos chegam à idade adulta como verdadeiros catecúmenos.
A partir daí começou um movimento para uma nova evangelização. “ Nova” no ardor e “nova” no método. No ano 2000 foi feito um grande esforço para evangelizar toda a Igreja. A novidade principal era a inclusão dos leigos como agentes de evangelização e a abordagem corpo a corpo para passar o kerigma. O projeto acabou não dando certo porque faltou o essencial: o “novo ardor” que supunha uma conversão pessoal. A evangelização não consiste em instrução e catequese, consiste antes na comunicação de uma experiência de Deus. Sem esta experiência nenhum presbítero, nenhum bispo consegue converter (cf. Pe. Lacordaire e o Cura d’Ars).
Para ilustrar o que venho dizendo, eis uma pequena história… Em meados do século XIX, vivia na França um grande orador de nome Henri Lacordaire que arrebatava as multidões com a sua pregação. As pessoas faziam lotações para ouvir o homem falar e diziam: “Esse homem precisa ser inscrito na Academia Francesa de Letras”. Dominava a arte retórica como ninguém. Do outro lado da França, vivia um humilde pároco, de nome José Maria Vianney. Era fraco nos estudos. Como teólogo costumava tirar 4 ou 5 nas provas. O bispo não queria ordená-lo: “O que vou fazer com um padre burro?” Mas os colegas diziam: “Mas, Senhor bispo, o rapaz é fervoroso e um bom companheiro. Por que o senhor não o ordena e manda para a roça, no meio do povo simples?…”.
A ordenação aconteceu e o bispo o mandou para Ars, uma pequena cidadezinha. Na primeira Missa, conta a biografia, havia uns “gatos pingado”, umas dez pessoas. Mas, aos poucos, os curiosos foram chegando. Os que chegavam, ficavam. A pregação era fraca. O padre falava sempre a mesma coisa: o querigma, o básico, mas o que falava saia do coração. É que ele tinha uma profunda experiência de Deus. Ele passava adiante esta experiência. Não demorou e a igreja se encheu. Mais: apareceram lotações para ouvir o padre falar e para se confessar. Saiam da igreja dizendo: “Como Deus é bom!” Moral da história: Evangelizar não consiste em falar bem ou fazer uma bela palestra. Consiste em passar adiante uma experiência de Deus. Por isso, o Cura d’Ars é o patrono dos párocos e, por extensão, de todos os presbíteros.
P. José Knob SCJ, 50 Anos de Ministério Presbiteral.
Homilia de Jubileu Sacerdotal