Padre Dehon e a Quarentena…
Como viver bem um tempo de quarentena segundo Padre Dehon
No dia 10 de março de 2020 entramos em quarentena na Casa Geral da Congregação dos Padres do Sagrado Coração de Jesus, aqui em Roma, por causa da pandemia provocada pelo Covid-19. Tivemos que nos adaptar a um novo estilo de vida, marcado pelo confinamento, que, enfim, tornou-se uma experiência partilhada com todo o mundo. Poucos dias depois do início do confinamento, celebrávamos a memória do nascimento do nosso fundador Padre Dehon, no dia 14 de março, que era também o dia do meu aniversário: sensação estranha, um aniversário engaiolado! Perguntei-me
como Padre Dehon viveria o seu aniversário numa situação semelhante e quais seriam os seus conselhos para ajudar-nos a viver essa realidade.
Obviamente, Padre Dehon não viveu uma pandemia de coronavírus, mas experimentou a dura prova da quarentena quando precisou enfrentar o longo tempo de reclusão em São Quintino, fechado na Casa Sagrado Coração por 2 anos, 2 meses e 16 dias (do dia 28 de agosto de 1914 ao dia 12 de março de 1917) durante a Primeira Guerra Mundial. Logo, partindo da sua própria experiência, certamente Padre Dehon teria algo a nos dizer sobre como viver um tempo de quarentena.
Por isso, procurei recolher os testemunhos de como Padre Dehon viveu esse período para encontrar aí recomendações e atitudes suas que podem iluminar o nosso momento atual.
Existem três fontes principais para entender como Padre Dehon enfrentou o confinamentodurante a Guerra. A primeira fonte são os cadernos do seu diário, conhecido como Notes Quotidiennes: ao todo são 6 cadernos e um total de 768 páginas manuscritas com anotações de Dehon no período de reclusão . A segunda fonte são os quatro cadernos de memórias escritas por Padre Dehon com o título “A Casa Sagrado Coração durante a guerra” : aqui encontramos uma descrição da vida quotidiana na casa-mãe da Congregação e na cidade de São Quintino durante a ocupação alemã. A terceira fonte é um testemunho manuscrito de padre Maurice Devrainne, que viveu com Padre Dehon esse período de confinamento em São Quintino, cujo título é “Anotações sobre o Reverendo Padre durante a guerra”: o texto original se encontra nos arquivos da Província EUF, em Paris, mas o seu conteúdo foi retomado por Auguste Ducamp na sua biografia de Padre Dehon, uma das mais antigas . Além dessas três fontes, podemos citar o precioso trabalho publicado pelo Centro Studi Dehoniani por ocasião do primeiro centenário de conclusão da Primeira Guerra, em 2018, sobre como o Fundador e a Congregação viveram e foram diretamente envolvidos nesse evento.
Então, quais seriam os conselhos de Padre Dehon para viver bem um tempo de quarentena? Antes de tudo, observemos o estado de ânimo do Fundador no tempo de reclusão em São Quintino. Ducamp afirma que o domínio de si era a sua principal característica diante das duras provas da guerra, a sua calma impregnada de fé e a sua confiança inabalável . Portanto, primeiro conselho de Padre Dehon: tenha confiança em Deus! Ele escreveu no seu diário: “Devo abandonar-me aos cuidados amorosos de Nosso Senhor. Mil vezes me salvou e me levantou, e o fará de novo. Ele vai acomodar todas as coisas”. Um outro conselho de Padre Dehon: conserve o otimismo e o senso de humor! Devrainne, o companheiro de comunidade durante a guerra, declara no seu testemunho sobre o fundador: “Sempre otimista, amiúde vinha até nós e nos fazia rir quando nos via abatidos pela guerra”. E às vezes parava para jogar gamão com a comunidade. Padre Dehon nos recorda que é importante aliviar o peso do confinamento e do medo na vida quotidiana. De fato, o historiador David Neuhold, um dos atuais estudiosos de Padre Dehon, depois de analisar os seus escritos sobre a guerra, conclui que “Dehon mesmo se revela um homem cheio de senso de humor e de vontade de viver, sem medos, em contraste com o medo que aparece às vezes atribuído aos outros descritos nas suas anotações” .
Padre Dehon escreveu nas suas memórias sobre a Casa Sagrado Coração durante a guerra: “Era difícil [a vida em São Quintino]. Todo dia a alternância entre angústias e esperanças nos cansava […]. Eram necessários o abandono em Deus, a oração e a leitura espiritual para conservar a serenidade da alma. Muitas notícias falsas, muitas mentiras nos incomodavam com frequência” . Podemos encontrar aqui mais um importante conselho de Padre Dehon: cuidado com as “fake news”! É importante não
alimentar as angústias com o excesso de notícias, quase sempre falsas; é preciso verificar a credibilidade das fontes e conservar sempre a esperança.
Das suas anotações, podemos deduzir que Padre Dehon dedicou a maior parte do tempo da sua “quarentena” à leitura. Assim escreveu nas memórias sobre a Casa Sagrado Coração: “A guerra me dava tempo livre. Tive tempo para ler tudo aquilo que acumulei na minha biblioteca de livros ascéticos, vidas de santos e tratados de espiritualidade” . Dedicou-se sobretudo à leitura espiritual. Podemos citar, entre os autores mencionados no seu diário, Santa Catarina de Sena, Santa Brígida, Santa Teresinha do Menino Jesus, Santa Elisabete da Trindade, Santo Agostinho, Santo Afonso Maria de Ligório…
Padre Dehon também leu a Sagrada Escritura, principalmente os livros sapienciais: Salmos, Provérbios, Eclesiastes, Eclesiástico, Sabedoria… Eis, portanto, uma outra exortação de Padre Dehon para viver bem a quarentena: dedica-te à leitura espiritual e à Palavra de Deus! São um sustento para compreender à luz divina os fatos da história e do tempo presente. E além da leitura espiritual, dedica mais tempo à oração, à comunhão espiritual, ao relacionamento com Deus! A guerra impôs a Padre Dehon uma dura pena: nenhuma viagem. A oração se tornou a sua grande aventura, como escreve: “É na minha reclusão em São Quintino que faço as minhas maiores viagens. Percorro na imaginação o grande campo de Deus”.
Um outro elemento característico de como Padre Dehon viveu o tempo da guerra é o trabalho. Confinado em casa, não cessou de trabalhar. Como testemunha o confrade Devrainne, ele “trabalhava sempre e não prolongava nunca o tempo de recreação, nem mesmo nos dias de eventos extraordinários”.
Aprendeu a praticar home working, trabalho remoto. Ducamp atesta que Dehon, durante a reclusão, escreveu o Manual dos leigos agregados à Congregação e fez a revisão do Diretório Espiritual . Logo, também esse poderia ser um conselho de Padre Dehon para o tempo de quarentena: fique em casa, trabalhe em casa, procure descobrir a beleza de estar em casa! No seu diário, encontramos um Dehon que reserva tempo para cuidar do jardim da casa: “Cuido do meu jardim. O jardim do convento faz parte da casa do Bom Deus. Ele prepara flores para a capela” .
Além disso, Padre Dehon nos ensina que o confinamento não significa uma perda nos
relacionamentos. Pelo contrário, é preciso vivê-lo como um tempo no qual se cultivam boas relações e se dedica serviço aos outros. Segundo Ducamp, o Fundador ia a pé em meio a uma cidade bombardeada para oferecer serviços religiosos às Irmãs . Dehon se prestava ao cuidado dos doentes, como conta nas suas memórias sobre a Casa Sagrado Coração: “Encontrava amiúde a senhora Malézieux e lhe levava uma ou duas vezes por mês a santa comunhão […]. Chamavam-me para alguns doentes, velhos conhecidos. Preparei diversos para a morte” . Nas mesmas memórias, Padre Dehon revela a importância das amizades durante a reclusão: “No momento de prova nos voltamos para os amigos e as antigas relações […]. Nos tempos difíceis, é necessário encorajar-nos reciprocamente, confidenciar as penas e comunicar as próprias esperanças” . Devrainne confirma no seu testemunho que muitos vinham consultá-lo. E mesmo na comunidade, Dehon dava prova da sua fidelidade aos valores da vida fraterna: tendo recebido dos confrades alemães a oportunidade de escapar de São Quintino, disse que preferia permanecer com sua comunidade . Conselhos de Padre Dehon? Ajuda quem precisa, sobretudo moral e espiritualmente; cultiva boas relações com os amigos, com os familiares, com os confrades, com aqueles que estão mais próximos.
Para concluir, devemos considerar uma atitude de perspectiva de Padre Dehon nos anos da guerra. Nesse período, ele procura fazer uma revisão da própria vida e escreve inclusive o seu “Testamento Espiritual” . Reconhece que a reclusão o ajudou a repensar a existência e a considerar as coisas essenciais: “Que lições de desapego e sacrifício em todas essas espoliações! Que luzes sobre a vaidade das coisas do mundo… Nosso Senhor quis que eu fizesse um retiro de três anos. Tinha muito que colocar em ordem. Estive separado do mundo, sem viagens, sem jornais e sem correspondências. Foi preciso um golpe de Providência como essa guerra para dar-me essas vantagens” . Mas Padre Dehon também reconhece que, privado do apostolado, aquele era um tempo para projetar o futuro da Congregação: “É doloroso ser forçado a recusar o exercício do apostolado. Desejo tanto trabalhar no reino de Nosso Senhor! O que me resta é santificar-me no recolhimento e completar a organização da minha Congregação, preparando o Capítulo Geral” . Assim, podemos individuar quais seriam os últimos conselhos de Padre Dehon para ajudar-nos a viver bem um tempo de quarentena: repensa a própria vida, aprende com aquilo que passou e projete um futuro melhor! Aprendamos com Padre Dehon a viver esse tempo como um tempo da graça de Deus.
Dom Rodolfo Luís Weber, Arcebispo de Passo Fundo (www.cnbb.org.br).