TESTEMUNHO DE P. JOSÉ KNOB, AOS 81 ANOS
11 de outubro de 2021 – Testemunho de Vida
Faz 81 anos que vi, pela primeira vez, a luz deste mundo. Hoje quero comparecer, novamente, perante o Senhor para agradecer, pelo dom da vida e também por tudo o que consegui realizar por intermédio da Congregação, enquanto tive saúde e que levou para a minha realização pessoal. Como Deus não é um ser extra-terrestre, que intervém caprichosamente neste mundo, mandando castigos e recompensas, como entendem os pagãos, mas o fundamento do ser ao mesmo tempo transcendente e imanente, a base da nossa existência, toda a nossa vida transcorre envolvida pelo mistério de Deus, embora a gente não o perceba, porque a Providência Divina não é um dado de experiência, mas de fé. Muito bem o disse Paulo no discurso aos atenienses: Deus não está longe de nós, pois nele existimos, nos movemos e somos. E Agostinho: Deus intimior intimo meo (Deus está mais íntimo em nós do que nossa fontal intimidade).
Como agora já estou na descida e não sei até quando, achei que seria oportuno, nesta altura do campeonato, dar um testemunho a respeito de minha vida porque vocês, fratres, aqui presentes e seus colegas ausentes, pouco ou nada sabem a meu respeito.
Quando aqui comecei a lecionar, nos idos de 1972, ninguém de vocês era nascido. Enquanto vocês nasciam, cresciam e aprendiam a falar e escrever, eu aqui estava lecionando Teologia sistemática, durante 44 anos (um record); quase que vocês me pegam lecionando… não sabem o que perderam! Sempre pra tiquei uma teologia libertadora e aberta para o futuro sem que jamais alguém questionasse o meu modo de fazer teologia.
Graças a Deus, a Dehoniana é uma faculdade aberta. Durante muitos anos fui também “prefeito de estudos”, o que hoje se designa como coordenador da teologia. Em 1973, além de professor, fui nomeado também pároco de Redenção da Serra, situada a 35 Km. de Taubaté. Esta cidade estava para ser inundada, como o foi, pela represa Paraibuna-Paraitinga. Situação dramática para a população porque o Estado, governado por tecnocratas, no tempo da ditadora militar, não queria uma nova cidade porque, diziam, “cidade pequena dá prejuízo”. Era o tempo de Laudo Natel e Lucas Garcês que, como tecnocratas, não tinham sensibilidade para o problema humano acarretado pela extinção da cidade.
Para a população da cidade havia, pois, um dilema: ou empreender a reconstrução da cidade sem o apoio do Estado, ou se submeter à dispersão entre as cidades vizinhas, como queriam os tecnocratas. Ora, o povo tinha amor pela cidade com a qual tinha muitos vínculos, não queria que a cidade desaparecesse sem mais, ainda mais que Redenção da Serra fora a primeira cidade do estado de São Paulo a libertar os escravos, antes mesmo da Lei Áurea. Daí o nome “Redenção”.
Foi feita uma reunião com os líderes da cidade, falou um, falou outro e mais um outro e, ao final, perguntaram a minha opinião: Me senti numa saia justa. Tremi na base. Era muita responsabilidade (vocês sabem que em cidade pequena a palavra do padre é referência, ontem mais do que hoje). Para mim, dilema crucial, algo como ser ou não ser. Dizer não à reconstrução, seria contrariar a expectativa popular; dizer sim, era dar um passo no escuro, embarcar numa aventura rumo ao desconhecido.. Por fim, me armei de coragem e eu falei: “como é para o bem de todos e felicidade geral da população, eu fico, quer dizer, eu apoio a reconstrução. Vamos reconstruir a cidade”. Aplauso geral! Decisão corajosa e até ousada porque implicava num grande desafio. O futuro era uma incógnita. Uma utopia. Aparentemente, pouco provável. E para mim, um drama: como conciliar professor novo e pároco novo?…
Mas aqui devo revelar o meu segredo, a minha filosofia de vida: Sempre FAZER A HORA e nunca esperar acontecer, como disse em forma de uma bela canção Geraldo Vandré: “vem, vamos embora que esperar não é saber, quem sabe faz a hora, não espera acontecer”. Nasci com esta filosofia, está no meu DNA.
Na prática, uma tal filosofia exige muita força de vontade, muita garra, persistência, fé, suar camisa, e também sofrimento, porque se trata em certo sentido de antecipar os acontecimentos, ir na contramão da história. Mas para mim acabou dando certo. Sempre consegui o que eu quis. Começou a reconstrução, preciso resumir, foi uma luta titânica que custou sangue, suor e lágrimas. Uma verdadeira epopéia!
Pessoalmente tive que começar a luta pela indenização dos bens da Igreja. Consegui após uma longa batalha judicial. Com a indenização consegui levantar e cobrir a Igreja Matriz e a casa paroquial. Tudo o mais consegui com campanhas e churrascos beneficentes: Carrilhão de sinos, bancos e piso da Igreja Matriz, pintura, praça, gruta, Capela do Cruzeiro com uma linda pintura do mestre Justino, salão paroquial, e, por fim, Centro de Pastoral e Promoção Humana. Sempre FAZENDO A HORA, sem esperar para ver. Além disso, é claro, toda a pastoral da cidade, e das 12 capelas rurais. Redenção consumiu a minha juventude.
Ao mesmo tempo eu pude viver a oblação, mística que me atraíra para a vida religiosa da Congregação.
Por fim, após 28 anos, quando tudo estava pronto, fui convidado ou melhor pressionado por um conselheiro provincial (que Deus o tenha) a deixar a paróquia a qual então foi entregue à Diocese. Fui transferido para São José dos Campos, para ser colaborador paroquial durante 15 anos. Dei muitos cursos de teologia para leigos e assessorei a comissão diocesana de fé e política.
Agora, no mês de julho, como sabem, enfrentei a cirurgia da coluna, de elevado risco. Resolvi fazer a operação porque eu mais uma vez queria FAZER A HORA. Havia 15 riscos entre os quais: a longa anestesia, paraplegia, risco de hemodiálise, embolia pulmonar, trombose venosa. Além de outros… Entrei no centro cirúrgico às 6,30 da manhã. Logo apareceu um senhor com uma injeção. Perguntei: é a anestesia? Não, disse ele, é a preparação para a anestesia. Foram as últimas palavras que ouvi. Apaguei! Às quatro da tarde, pasmem, ouvi as primeiras palavras, foram da enfermeira: agora o sr. está na UTI. Mas antes de voltar da noite da anestesia para o dia da vigília passei por uma experiência terrível, muito cruel: algo de surreal: uma espécie de meia morte, ou um misto terrível de morte e vida.
Se isto faz parte da liturgia da morte, então, quando chegar a minha hora, posso ser dispensado desta parte porque já passei por ela. Por fim, a vida venceu! Nunca mais quero passar por semelhante experiência.
Nenhum dos riscos se concretizou. Tive muita sorte. Sorte ou Providência Divina. As duas, provavelmente. Deus sempre age através da mediação humana. Como disse Agostinho: o homem sem Deus não é, Deus sem o homem não pode.
A recuperação está sendo lenta. Além disso, a longa anestesia deixou uma sequela não prevista: o enfraquecimento da memória. Espero recuperá-la. Aproveito para agradecer a solidariedade dos fratres, sempre dispostos a me prestar pequenos mas para mim importantes favores. Um agradecimento especial à Ir. Têre, sempre atenta para me servir. O tempo da aposentadoria está sendo muito penoso para quem sempre estava acostumado a FAZER A HORA e agora não tinha mais porquê. Para compensar, inventei então um blog onde comento as leituras do domingo para ajudar os leigos de mente aberta a ter uma fé inteligente, madura e esclarecida.
Dessa maneira continuo a evangelização que não posso mais fazer ao vivo.
Concluindo: encontrei realização no magistério e como pároco-administrador, mas, infelizmente, não evolui na vida religiosa. O magistério e a paróquia em construção me consumiram. A mania de fazer a hora não deixou tempo para a meditação e oração pessoal. Por isso não atingi a humanização plena que eu tanto queria. Agora, paciência! Mas ainda continuo inquieto, na busca da verdade. Que Deus, na sua misericórdia, não leve em conta a minha falha e me perdoe.
E quem achar que não tem tempo suficiente para a meditação e oração pessoal, peça perdão comigo: Senhor…
Pe. José Knob, Conventinho de Taubaté